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Na última segunda-feira, dia 11 de novembro,  recebi uma bela homenagem pelos mais de 30 anos trabalhando na formação de jovens como professor da Faculdade Mineira de Direito da PUC-Minas.

Na ocasião discursaram o Professor Ronaldo Bretas, assim como o Professor Marcelo Gallupo, que foi meu aluno na graduação cursando a matéria Introdução ao Direito e, anos depois, meu professor no mestrado.

Marcelo enviou-me por e-mail o seu discurso, que muito emocionou-me. Decidi então compartilhá-lo com vocês.

DISCURSO DE SAUDAÇÃO AO PROFESSOR PATRUS ANANIAS DE SOUSA NA HOMENAGEM QUE LHE PRESTOU A FACULDADE MINEIRA DE DIREITO DA PUC MINAS

 NOMINATA

Quando solicitaram-me que apresentasse o Professor Patrus Ananias de Sousa nesta homenagem, senti-me muito honrado e muito temeroso ao mesmo tempo. Sei que não é tarefa fácil apresentar uma figura pública, como Patrus. Mas sei, também, que provavelmente escolheram-me porque, de algum modo, represento uma geração de professores cuja trajetória foi decisivamente marcada pela presença de Patrus entre nós; assim, aceitei esse encargo em nome dessa geração, composta por professores como Antônio Fabrício Mattos, Roberto Martins, Leonardo Isaac Yaroschewsky e o recém-falecido Fábio Alves dos Santos.

Seria inútil apresentar aqui uma síntese do pensamento de Patrus. Primeiro, porque trata-se de um pensamento em constante evolução, ainda que guarde profunda coerência com seus valores fundamentais. Por isso, eu sempre correria o risco de apresentar suas ideias em um ponto aquém do que elas se encontram, se tentasse sintetizá-las. Além disso, eu nunca poderia fazê-lo tão bem como o próprio Patrus, que de fato o fará em alguns minutos. Então, resolvi falar de Patrus, meu professor.

Em 1986, quando mudei-me para Belo Horizonte para estudar Direito, encontrei-me pela primeira vez com Patrus. Ele foi meu professor de Introdução ao Estudo do Direito. A barba um pouco mais escura e bem mais comprida não conseguiam esconder a marca do sorriso de Patrus, que revela sua sabedoria e generosidade, para além do seu conhecimento e da sua erudição.Mas havia algo ainda mais impressionante em Patrus do que sua barba e seu sorriso: era quando ele começava a falar. Ele era tomado de entusiasmo. É preciso prestar atenção nessa palavra: entusiasmo. No meio dela, aparece o radical theos: Deus. Ter Deus dentro de si. E, à medida que falava, seu entusiasmo geralmente se transformava em indignação. A denúncia profética da situação daqueles de nosso povo que foram humilhados e ofendidos pelo sistema sempre caracterizou o magistério de Patrus. Mas os profetas são movidos pela esperança, a esperança de que, apesar do escuro, nós sabemos que a manhã vai chegar.

Se quisermos compreender Patrus, precisamos compreender as raízes desse seu compromisso social. Sei que Patrus sempre foi assim, e que sua mãe se preocupava com a compulsão que seu menino sentia em Bocaiúva em alimentar a todos aqueles que batiam à sua porta, pedindo por um pouco de alimento. Mas também sei que seu compromisso social encontrou sua expressão intelectual quando, em 1972, Patrus conheceu seu professor de Introdução ao Estudo do Direito na Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais, o mestre Edgar de Godói da Mata-Machado (de quem celebramos o centenário de nascimento no corrente ano), também professor desta casa e grande conhecedor da obra de Jacques Maritain. Influenciado pelo personalismo de Mounier e pela obra de Tomás de Aquino e de Aristóteles, o pensamento de Maritain representou a mais importante renovação do Direito Natural e do humanismo de cunho católicono século XX. Esse encontro de Patrus com a obra de Maritain, por meio de Mata-Machado, foi decisivo para consolidar seus valores, que o levaram a envolver-se com um outro curso da PUC Minas, além do curso de Direito: o curso de Serviço Social. Esse compromisso e sua vinculação ao humanismo de Maritain também levou Patrus a fundar e a dirigir a seção mineira do Instituto Jacques Maritain na PUC Minas, quando coordenou uma das mais interessantes coleções já editadas pela Universidade: o Coração Informado, com contribuições de pensadores como Marcelo Perine e Padre Vaz.

Mas a natureza profética de seu magistério e seu compromisso social não dizem tudo sobre Patrus. Quando o conheci, os tempos eram outros. O Brasil começava a se redemocratizar, a Assembleia Nacional Constituinte fora convocada, mas ainda pairava sobre todos o medo de que o arbítrio retornasse ao país. Eu bem sabia o que era isso, tendo sido meu próprio pai convidado a prestar algumas informações à DOPS, na década anterior.

Apesar da instabilidade, apesar do medo, apesar de tudo, era preciso preparar e formar uma massa de alunos que chegavam ao curso de Direito pasteurizados pela tecnização domesticadora que a reforma Passarinho produzira também no ensino fundamental e médio. Era preciso preparar aqueles jovens para a democracia e para a cidadania. E foi aí que ter estudado na Faculdade Mineira de Direito e ter me encontrado com Patrus fez toda a diferença para mim.

Lembro-me de que um dos primeiros livros que ele pediu que eu e meus colegas lêssemos foi uma pequena obra de Raymundo Faoro, um desconhecido para mim até então: Assembleia Constituinte: a legitimidade recuperada. Raymundo Faoro ensinava que uma constituinte não é fruto de ruptura com o passado, mas de profundas aspirações por mudança, e que “sem a plenitude da participação do povo, o governo não será nunca um governo constitucional, mas (apenas) um governo de fato, dissimulado em aparências constitucionais”.Democracia: era disso que se tratava. Para Patrus, não era apenas de uma questão intelectual ou conceitual. Patrus traz para a sala de aula a experiência democrática. Na sua aula, as propostas pedagógicas estavam sujeitas ao diálogo, e o cotidiano era uma experiência de contínua aprendizagem democrática.

Mas há ainda uma terceira característica que devemos acrescentar, se quisermos compreender a importância de Patrus para minha geração. E, para isso, preciso lembrar de outro grande nome dessa Faculdade.

Considero que três diretores, no passado, foram os grandes responsáveis por sermos hoje quem somos. O primeiro deles, nosso fundador, o professor Lopes da Costa, que, inspirado pelo sonho de instituir uma presença católica no ensino jurídico mineiro, sob o pálio do versículo bíblico do livro de Salmos: Lex tua veritas (a tua lei é a verdade), criou a célula mãe de nossa Universidade há sessenta e três anos. Mais recentemente, o professor César Fiuza, criando o Programa de Pós-graduação em Direito e redefinindo as relações da pesquisa com o ensino, e da graduação com a pós-graduação, possibilitou o caminho para que nossa Faculdade se constituísse em um dos centros de excelência do ensino jurídico brasileiro. Mas, entre eles, há um homem que temo que tenha sido esquecido por muitos de nós, aquele que foi nosso diretor entre 1985 e 1988, o professor Oswaldo Machado dos Santos. Muito antes de o MEC e a OAB o exigirem, o professor Oswaldo percebeu que o futuro da Faculdade dependia da vinda de professores com mestrado e doutorado para nossa instituição. Aquele era um contexto de profundas mudanças, devidas à redemocratização e à reconstitucionalização por que passava o país, e as velhas teorias da época da ditadura militar não dariam conta da tarefa de criar o novo. Foi neste contexto que Carmem Lúcia Antunes Rocha, Ronaldo Bretas e Álvaro Ricardo de Souza Cruz, dentre outros,ingressaram para nossa Faculdade como professores. Uma das atitudes inovadoras do professor Oswaldo foi criar um núcleo discente de pesquisa. Alunos como eu, nossa saudosa Núbia e o hoje desembargador do Tribunal de Justiça de Minas Gerais, Oswaldo Firmo, se reuniam sob a orientação da professora Carmem Lúcia, do professor Joaquim Carlos Salgado e do professor Patrus. Mas havia algo diferente com Patrus. É que os livros que ele lia não eram os livros que a maioria dos professores da Faculdade liam. Durante semanas vi ele subir com um livro na mão para a sala de pesquisa, onde hoje é a secretaria do Programa de Pós-graduação em Direito. O livro era Os sentidos da Paixão. O que aquilo tinha a ver com o Direito? Hélio Pellegrino, Pedro Nava, Guimarães Rosa, Cervantes, Thoureau, esses eram os seus autores. Certa vez, em sala de aula, ele me perguntou: “Marcelo, você já leu Dom Quixote?” E o que ouvi dele, quando respondi que não, ainda hoje me desconcerta: “Que inveja eu tenho de você! Porque você ainda vai passar por um prazer que eu não posso sentir mais: Lê-lo pela primeira vez!” Outra vez, ele me perguntou: “Marcelo, você sabe o que quer dizer autenticidade? Você nunca vai saber se não ler Walden”. Só muito tempo depois é que eu percebi que aquilo tudo de fato não tinha a ver com o Direito: aquilo era o Direito. Não o direito dos livros, que ensina técnicas para preservar os poderosos no poder, mas o Direito real, da vida real, do tempo real.

Inquietação intelectual, compromisso com a democracia e compromisso com a transformação social sempre caracterizaram o professor Patrus.

Mas agora preciso falar de um outro Patrus. Todos nós conhecemos o homem público Patrus, e, se é desnecessário apresentar o professor Patrus, chega a ser um insulto à inteligência dessa assembleia apresentar o político. Mas isso é necessário, porque o que caracteriza meu professor é que ele não é duas pessoas, mas uma só, e a coerência é quarta característica da marca que ele deixou em nós, seus alunos.

Em 1988, tivemos a primeira eleição de que participei como eleitor: a primeira eleição municipal após a promulgação da Constituição de 1988, a primeira, em trinta anos, sem restrições políticas à escolha de prefeitos e vereadores. Patrus foi candidato a vereador. Lembro-me ainda hoje do slogan de sua campanha, um verso de Caetano Veloso: “gente é p’rá brilhar, não p’rá morrer de fome”. O que me marcou, então, foi o jeito de Patrus fazer política. Com pouquíssimos recursos, Patrus reuniu seus alunos do curso de Direito e do curso de Serviço Social em sua casa para ajudarem a discutir uma plataforma para orientar seu mandato. E, assim, eu contribuí, pela primeira vez, com a construção de um projeto para a cidade. Eleito vereador, ele foi o relator da Lei Orgânica do Município, que, se não me engano, é a única de uma capital brasileira que prevê a possibilidade de o povo emenda-la por iniciativa popular.

Depois, em 1992, Patrus elegeu-se Prefeito de nossa Capital. Lembro-me como se fosse hoje de sua propaganda na televisão. O tempo não era muito, mas que estrago ele fez! Lembro-me do jingle, que era uma música de Samuel Rosa (na verdade, acho que, em certo sentido, Patrus inventou o Skank). A música era Indignação. Eu mesmo gravei uma pequena manifestação para um de seus programas de televisão. Eu disse: “Voto no Patrus porque ele une o Sonho de Dom Quixote com a lucidez de Sancho Pança”(e acho que isso ainda hoje define o Patrus!) Patrus elegeu-se prefeito e governou Belo Horizonte de 1993 a 1996. Foi o prefeito do centenário e, mais importante, foi o prefeito mais solidário e mais democrático que nossa capital já teve: orçamento participativo, festivais de cultura popular, Festival Internacional de Teatro, preservação dos campos de várzea: uma cidade para todos. Creio que, de todas as realizações de seu governo, as mais exemplares, do ponto de vista da democracia, foram a barragem Santa Lúcia e o Parque JK. A zona sul queria que o espaço fosse transformado em um centro de lazer para seu uso exclusivo. Os moradores da comunidade reivindicavam o espaço para si. A solução de Patrus foi um espaço de convivência entre a comunidade e os moradores dos bairros nobres da zona sul, onde poderiam aprender juntos com a sua diversidade que a solidariedade é possível, que uma outra cidade, menos exclusiva e mais inclusiva, era possível.

Aí ocorreu o mais impressionante. Depois do término de seu mandato com prefeito, Patrus realizou um gesto de humildade de que somente os grandes homens são capazes: Patrus voltou para os bancos da escola, e cursou o mestrado em Direito em nossa Faculdade. Em 2000, meu professor Patrus foi meu aluno na disciplina de Filosofia do Direito. Que constrangimento para mim! Lembro-me de que, naquele semestre, dedicamo-nos a estudar Uma Teoria da Justiça, de John Rawls. Pergunto-me em que medida as ideias de Rawls, aliadas à sua formação Tomista e Maritainiana, não contribuíram para o último cargo político que Patrus exerceu: o de Ministro do Desenvolvimento Social e do Combate à Fome, de 2004 a 2010, depois de ter sido deputado federal entre 2002 e 2004, o mais bem votado da história de Minas Gerais. No cargo de Ministro, Patrus foi responsável pelo mais bem sucedido programa social do governo Lula, o programa Fome Zero, atando a vida de hoje com as preocupações do menino de Bocaiúva.

Depois disso, vieram (pelo menos) mais duas eleições. Primeiro, como candidato a vice-governador e Minas Gerais e, mais recentemente, novamente como candidato a prefeito de nossa capital. Nessas duas, ele não se elegeu (o que indica para nós que às vezes é bom estar do lado dos derrotados). Nessa última eleição para prefeito, também gravei um depoimento para seu programa de televisão, um depoimento bem emocionado, no qual disse que se tem algo diferente no Patrus é que ninguém trata ele por “doutor” Patrus: ele é igual à gente.

Entre essas duas eleições, Patrus voltou mais uma vez para Faculdade, e assumiu seu velho posto de professor de Introdução ao Estudo do Direito. Lembro-me do ar de surpresa daqueles que eram seus alunos ao encontrarem o Ministro Patrus em sala de aula.

Com sua coerência, com seu compromisso social, com seu compromisso com a democracia, com sua inquietação intelectual, Patrus é um homem único, que ajudou a moldar parte de meu caráter, meus valores e meus ideais.

A vida ensinou-me que aquilo que parecemos ser na esfera pública às vezes não passa de uma máscara que, mais cedo ou mais tarde, sempre cai. Por isso, é preciso avaliar a coerência da vida de cada homem. E há duas maneiras de se fazer isso. A primeira, é fazendo aquilo que Jesus Cristo pediu-nos que fizéssemos: que verificássemos onde estão os tesouros de um homem. Pois onde estiver o tesouro de um homem, aí estará seu coração. Sempre desconfiei de falsos socialistas que bebem Whiskey Single Malte fumam charutos cubanos, e que dizem que querem que todos tenham acesso ao Single Malte ao charuto cubano… Porque, como nos lembra Sarte, quem fala de sangue, e não está sangrando, é um impostor. Nesse quesito, Patrus foi provado e aprovado. O seu relativamente modesto patrimônio é uma prova de uma vida que busca, não o seu próprio bem, mas o bem comum: non sibi. A outra maneira de se avaliar a coerência da vida de alguém não é por meio de sua biografia, mas das biografias de seus filhos e netos. Patrus tem dois filhos com a professora Vera Victer. Conheço bem um deles, o hoje vereador Pedro Patrus, que tem se mostrado a voz mais vigorosa na Câmara Municipal em prol da luta pela democracia e pela solidariedade. Também nesse quesito, Patrus foi provado e aprovado. Seu exemplo, Patrus, transcende em muito qualquer coisa que eu poderia dizer sobre você.

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 Todas as vezes em que participamos juntos de algum evento, Patrus honra-me dizendo que eu fui seu aluno, depois seu colega, e finalmente seu professor. Infelizmente, tenho que corrigí-lo. Patrus, serei para sempre seu aluno. Porque, como diz Riobaldo, “mestre não é quem ensina, mas quem de repente aprende”.

Belo Horizonte, 11 de novembro de 2013

Marcelo Campos Galuppo