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Do Jornal O Tempo
Segunda carta ao governador Antonio Anastasia
Sebastião Nunes

Senhor governador: Quanto vale uma vida humana? Não digo a sua, que vale muito, nem a minha, quase sem valor devido à idade. Perguntinha besta, não é mesmo? Além de besta, de tão difícil resposta que chega a lembrar a da esfinge, aquela famosa “decifra-me ou te devoro”.

No caso, a pergunta era a seguinte: “Que criatura pela manhã tem quatro pés, ao meio-dia tem dois, e à tarde três?” Resposta: “O homem, que engatinha quando bebê, anda sobre dois pés na vida adulta e usa bengala na velhice”. Quem não acertava a resposta era estrangulado e só Édipo logrou decifrar o enigma. Mas nosso enigma continua indecifrável.

Voltemos, pois, à pergunta inicial: quanto vale, digamos, a vida de uma criança?

Vários dos grandes escritores humanistas (especialmente Dostoievski, Faulkner e Camus) consideravam o sofrimento e a morte das crianças a abominação suprema e uma das provas da indiferença (ou mesmo da inexistência) de Deus.

Para eles, é justificável pela biologia a morte de um adulto, que viveu muito, mas não a de uma criança, a própria inocência. Indo além, responsabilizam pela morte de uma única criança o caos do Universo inteiro. Exagero, sem dúvida, divagação gratuita de humanistas desocupados. E que não conheceram Minas.

TOUROS PREMIADOS
Penso em crianças suburbanas e faveladas, ou mesmo do interior longínquo, dessas que brincam de pé no chão, às vezes por gosto, outras por não terem sandálias.

Se o senhor já brincou de pé no chão – não vale a macia areia das praias – sabe a que me refiro. Pois inúmeras pessoas nunca pisaram terra nua, como certos touros que conheci em grandes fazendas paulistas de inseminação. São animais imensos, valiosíssimos, que vivem em instalações especiais e têm apenas uma função: fornecer sêmen. Sua ração é formulada caso a caso e só viajam de avião, sendo o transporte para os aeroportos feito em veículos adaptados à sua corpulência e, é claro, a seu espantoso valor.

Quanto vale a vida de uma criança dessas, de pé no chão? Não tem futuro brilhante, talvez nem mesmo futuro algum. Cresce jogada pelos quintais e monturos, depois vai – se for – a uma escola insatisfatória. Mais tarde consegue – quando consegue – trabalho pesado de salário mínimo, que permite comer miseravelmente, morar miseravelmente, se reproduzir miseravelmente e, afinal, morrer miseravelmente numa enfermaria infecta, superpovoada de infelizes. Se vivem no interior, marcham a pé para o trabalho. Se na capital, gastam de três a quatro horas diárias dentro de ônibus lotados, atrasados e fedorentos.

Essa vida, com certeza, vale pouco. Mas não custa lembrar que ela é também única e deveria ser tratada como joia inestimável, embora sua insignificância a banalize, embora a quantidade com que nascem seus iguais a tornem desprezível, apenas mais uma entre tantos milhões de condenadas ao fracasso.

CAMINHO SEM VOLTA
Tenho um amigo, capitão da polícia militar, atuando em áreas de risco e especialista em prevenção e combate a drogas, com quem converso frequentemente. Certo dia fiz a ele a seguinte pergunta: “Qual é a idade limite para a recuperação de uma criança em situação de risco? A partir de que idade não será mais possível recuperá-la?”.

Claro que ele não tem uma resposta pronta. Claro que as variáveis são muitas. Claro que existem exceções. Mas pensou longamente, como se condenasse alguém à morte, me olhou cuidadosamente, e afinal soltou: “11 anos”.

Essa afirmação significa o seguinte: se até 11 anos a criança for afastada da área de risco e colocada em condições de saúde, educação e convivência no mínimo razoáveis, suas chances de recuperação são grandes. Caso contrário estará perdida – definitivamente perdida – para o mundo do tráfico, da delinquência, da ignorância e da crueldade.

SAÚDE PÚBLICA
É engraçado, senhor governador, mas desconheço o nome de seu secretário da saúde. Sem dúvida seria fácil ir ao portal do governo, clicar em secretarias, entrar na da saúde, e lá encontrar o nome e, talvez, a biografia. Mas não farei isso. Comporto-me aqui, como escrevi na primeira carta, como um cidadão comum, dotado de conhecimentos comuns. E deles não fazem parte saber o nome do secretário da saúde de Minas. Nem o do secretário da educação, assunto de uma próxima carta.

Dito isto, acredito que esteja ciente de sua recusa em aplicar os 12% exigidos pela Constituição na área que administra. Concordará com a recusa? Acreditará que são suficientes os recursos restantes? Ou apenas lavará as mãos?

Permita-me pedir ao senhor que sugira a ele o seguinte: que algum dia, anônimo, vá se postar diante de um hospital público e veja, apenas veja, o que acontece por lá. E sugiro anonimato por temer que, caso apareça em carro oficial com motorista, enfermos se enfureçam e, perdendo o pouco controle que ainda lhes resta, pratiquem algum ato de selvageria. Simples precaução, senhor governador.

Falar nisso, dia desses presenciei dois casos exemplares. O primeiro, de um jovem de seus 25 anos, daquela cor acobreada de nossos mestiços de índio e negro, sentado desamparado na porta de um laboratório público de radiologia. Quando eu passava, alguém se aproximou dele, perguntando: “Conseguiu?” E ele, com triste resignação: “Está quebrado. Só na Cristiano Machado”. Ou seja: só alguns quilômetros além. No outro caso, um adulto mais velho, entre 30 e 35 anos, descia, com as pernas enfaixadas e amparado em muletas, a rua próxima ao hospital, com aquele ar desconsolado dos pobres, para quem Deus sabe o que faz. E claro que sem dinheiro para táxi, talvez nem mesmo para o ônibus distante.

QUE TAL CUMPRIR A LEI?
Como afirmei acima, senhor governador, desconheço a extensão dos gastos que o senhor deveria fazer – mas não faz – com os 12% que a Constituição exige – e o senhor não cumpre – em recursos do Estado. Nem onde deveria aplicá-los. Faço-me cego de propósito, já que é impossível mergulhar nas finanças públicas e buscar entendê-las. Mas não entendo – e é apenas isto – como não se torna um estadista respeitado apenas cumprindo a lei.