(Discurso pronunciado pelo deputado Patrus Ananias em audiência pública da Comissão de Direitos Humanos e Minorias, da Câmara Federal, sobre a criminalização dos movimentos sociais)
Estamos vivendo um momento de desafios, de dificuldades. Não é pra gente desanimar, mas pra gente ter consciência e buscarmos ações eficazes que estejam à altura do momento histórico.
Além dos fatos que foram narrados aqui, anotei alguns pontos para a nossa reflexão.
O deputado Nilto Tatto (PT-SP) fez referência à chamada CPI contra o Incra e a Funai. Na verdade é uma CPI que vai muito além. Se for necessário para os seus objetivos, eles desconstituem o Incra e a Funai. Mas o objetivo deles é maior e muito mais penoso e desafiador pra nós: é retroceder com a demarcação das terras indígenas; retroceder com a demarcação dos territórios quilombolas e das comunidades e populações tradicionais; pôr um ponto final nessa conversa de reforma agrária – e ao pôr um ponto final na reforma agrária eles querem pôr um ponto final também em tudo aquilo que esteja vinculado à função social da propriedade e das riquezas, e aí também um ponto final na reforma urbana e na reforma tributária.
Então é uma CPI onde estão presentes as pessoas mais representativas do pensamento direitista aqui nesta casa – e olha que direitista não está faltando aqui. E é uma CPI que vai exigir de nós uma ação muito vigorosa.
Eu penso que devemos trabalhar em dois níveis. Um deles é o nível interno. O coordenador de nossa bancada na CPI, deputado Nilto Tatto (PT-MG), tem colocado muito bem que teremos que adotar uma ação enérgica de disputa de conteúdos na comissão, mas também de busca de diálogo e mediações políticas. Eu estou convencido também de que devemos ter uma ação pra fora. Nós tivemos aqui na Câmara uma experiência que eu considero muito positiva e que ainda vai ter desdobramentos no Senado. Foi a experiência de resistirmos à PEC 241, que ganhou o número 55 no Senado. Nós a chamamos de PEC do Desmonte – desmonta a Constituição, desmonta as políticas sociais, desmonta o Brasil, desmonta o estado nacional brasileiro. Mas nós conseguimos estabelecer uma certa mobilização. Fico feliz hoje quando vejo os jovens nas ocupações, os movimentos sociais, pautarem a questão da PEC 241. Nós buscamos uma interlocução com os movimentos sociais, com as universidades, com as escolas, com a juventude, com as igrejas, com a CNBB, com as pastorais. E tivemos um retorno crescente. Manifestações que foram se colocando, inclusive da própria CNBB e de outras organizações, Conic etc, nos últimos tempos.
Eu acho que nós temos que fazer essa disputa e vincular aí outra questão séria aqui na Câmara. Eles estão colocando pra votar aqui, breve, a venda de terras, sem limite, para estrangeiros. É a desnacionalização completa das terras, das águas, enfim, das riquezas do nosso país porque, vinculadas à terra, estão as águas, a biodiversidade, os ecossistemas, os recursos minerais subterrâneos. É uma coisa acintosa, porque significa abdicar da soberania nacional.
Aí eu penso que se abre outra frente de interlocução que vai além do campo democrático-popular, das esquerdas, das forças comprometidas com a transformação social. Abre um espaço pra nós conversarmos com todas as forças políticas, sociais, pessoas, entidades, movimentos que tenham um sentimento de pátria; que estejam empenhados em preservar o território nacional brasileiro, a nossa história, a nossa cultura, a nossa identidade; e em preservar as nossas terras para as futuras gerações brasileiras.
Então, penso em vincularmos as duas questões na perspectiva de buscarmos uma interlocução com a sociedade. Isto me parece uma questão fundamental hoje pra nós. Nós temos que sair do isolamento. Temos que ampliar o nosso diálogo, a nossa interlocução. E, claro, estabelecermos uma estratégia de ação, o que exigirá de nós também termos espaços de reflexão mais permanentes, mais organizados, onde nos encontremos periodicamente pra irmos acumulando nossas reflexões e construindo nossas estratégias de luta. Porque será luta dura. Nós não podemos subestimar os adversários – a direita brasileira apoiada por grandes grupos econômicos internacionais e, certamente, também por potências internacionais às quais interessam o desmonte do estado nacional brasileiro e a quebra da nossa soberania.
Aí eu vejo duas questões que acho importantes. Nós vivemos um momento de radicalização. As eleições nos Estados Unidos mostram isso. Eu penso que a tendência agora, no Brasil e no mundo, é começar a polarização esquerda e direita, com o enfraquecimento das chamadas forças de centro, das forças tradicionais, forças médias que tentam navegar entre um lado e outro – no caso daqui, a chamada burguesia brasileira. Eu penso que é o momento em que quem tiver ideias mais claras vai mobilizar a sociedade, seja a esquerda ou a direita. E aí devemos ter as nossas ideias com clareza e uma pauta nossa, que é reforma agrária, que é reforma urbana, que é reforma tributária, que é colocar em prática o princípio constitucional da função social da propriedade e das riquezas, a função social da terra, a questão da água, a questão educacional, a questão da juventude, a defesa vigorosa dos trabalhadores com relação a essa reforma trabalhista que estão anunciando – um retrocesso ao século XIX – de sobrepor o negociado ao legislado. Eu sempre lembro uma frase de um dominicano, um religioso católico francês chamado Lacordaire que, no início das discussões sobre direito do trabalho, lá no século XIX, fez uma frase primorosa (que eles estão querendo destruir hoje): “Entre o forte e o fraco, é a lei que liberta; a liberdade oprime.” É desigual e injusto você estabelecer o mesmo nível para negociação entre o detentor do capital e aquele que só tem a oferecer a sua força de trabalho.
No contexto político que me parece estabelecido, nós temos que ter esta compreensão: geralmente foram as forças do centro que tentaram buscar a esquerda; agora eu acho que nós, da esquerda, é que devemos buscar outras forças democráticas, nacionalistas, para ampliar nosso espaço de interlocução e tentar reduzir o espaço da direita. O que está acontecendo na Europa e o que aconteceu nas eleições dos Estados Unidos mostram que há uma perigosíssima tendência direitista no mundo. E aí nós, da esquerda, temos que assumir um papel civilizatório, um papel unificador de todas as pessoas que queiram o bem de seu próximo, o bem da sociedade, o bem da humanidade.
Concluo dizendo o seguinte: eu li ontem e fiquei encantado; li de novo hoje pra ver se era isso mesmo e confirmei. Estou falando do discurso do papa Francisco no encerramento do III Encontro dos Movimentos Sociais. Aí entendi porque é que a grande mídia brasileira está boicotando o papa. Ele saiu do noticiário, desapareceu. É como se não estivesse falando nada. Esse discurso dele não teve nenhuma repercussão. Ninguém falou. Chegou pra gente pelas redes. E eu penso que nós temos que fazer desse discurso dele, por exemplo, um instrumento da nossa luta, uma bandeira, porque é muito bom. Ela fala expressamente a questão dos movimentos sociais. Ele faz uma crítica direta, rigorosa, à questão da mídia. Se eu gostei ontem, relendo hoje eu fiquei mais entusiasmado ainda. Claro que estou citando o discurso do papa como um exemplo, porque há outras produções, outros textos. Mas penso que esse texto do papa Francisco deve ser uma referência pra nós nessa luta, inclusive pra alcançar outros setores. Estou listando aqui um tanto de amigos meus católicos e não católicos, gente de boa vontade que é gente moderada e mais de centro, pra mandar esse discurso e ver como reagem, como é que vão falar também.
E achei também uma coisa esplêndida o papa citar uma enunciação longa de um pastor negro e protestante dos Estados Unidos – a referência dele a Martin Luther King, que é outra referência fundamental pra nós. Eu imagino o que é que Luther King estaria sentindo agora em relação aos Estados Unidos. O Luther King foi, com certeza, uma das figuras mais luminosas do século XX. Com 33 anos ganhou o Prêmio Nobel da Paz; com 39 anos mataram ele – e mataram porque estava crescendo. Ele estava saindo da crítica racial pra crítica social e pra crítica internacional. No ano anterior ele tinha feito um discurso vigoroso contra a guerra do Vietnã. Acho oportuno a gente reapropriar a memória dessas pessoas.
E aqui encerro prestando uma homenagem. Eu sempre tive uma certa implicância e falei com o João Pedro Stédile e alguns companheiros. A gente chega nos encontros com o MST, com a Via Campesina e de vários outros movimentos sociais e vê muito retrato de personagens que a gente até respeita, uns mais outros menos – no caso de Marx é inquestionável, mas a partir do Lênin já começa a ser mais discutido – mas é muito estrangeiro pra meu gosto. Recentemente chegou lá no gabinete um tanto de retrato das nossas lideranças brasileiras. É um conjunto amplo, que vai do Apolônio de Carvalho ao Darcy Ribeiro, vai do Celso Furtado ao Milton Santos, vai de Sepé Tiaraju. Eu achei aquilo muito poderoso.
Eu acho que nós temos que nos reapropriar da memória dos grandes internacionalistas – Luther King, papa Francisco, Ghandi pra uns, Lênin pra outros -, mas, sobretudo, nos reapropriarmos da luta libertária do grande povo brasileiro. Porque, se tem uma coisa que nós temos que acreditar neste momento – e apostar com a certeza de que vamos ganhar – é apostar na brava gente brasileira. É acreditar que o povo brasileiro precisa encontrar o espaço pra sua ação. E quando o papa Francisco faz aquela defesa dos movimentos sociais, pedindo inclusive que os movimentos sociais não façam para o povo e, sim, façam com o povo, fazendo que se tornem efetivamente sujeitos da história na perspectiva da democracia participativa que a gente defende tanto, eu penso que é por aí que nós vamos encontrar o caminho. E com uma convicção: o momento é difícil, mas nós vamos ganhar.