Patrus Ananias
Há quase 240 anos os Estados Unidos da América elegem, a cada quatro anos, o seu presidente. Nesse período, apenas dois presidentes foram julgados a partir de um pedido de impeachment – e absolvidos. O que seria muito provavelmente condenado por razões evidentes, Richard Nixon, renunciou antes.
Andrew Johnson, que sucedeu a Abraham Lincoln, escapou do impeachment por um voto a menos que os dois terços necessários para o afastamento do cargo. Para o bem da Constituição e das instituições democráticas daquele país, Johnson permaneceu na presidência.
O impeachment instaurado em 24 de fevereiro de 1868 e seu posterior julgamento receberam uma avaliação histórica rigorosa: ato de oportunismo político. Ainda estavam abertas as feridas da guerra civil e do assassinato de Lincoln.
As travessuras sexuais do presidente Bill Clinton, acompanhadas de explicações nada convincentes para acobertá-las, não foram suficientes para afastá-lo do cargo. Afinal, eleição presidencial é coisa séria, como, de resto, todas as eleições e procedimentos democráticos, e a vontade popular expressa nas urnas não pode ser desconsiderada, a não ser em casos muito graves que configurem crime de responsabilidade devidamente previsto na Constituição.
No Brasil, as forças políticas e econômicas conservadoras tentaram afastar pelo impeachment o presidente Getúlio Vargas. Perderam. Foram essas forças mais ousadas e explícitas em 1964, quando depuseram o presidente João Goulart através de um golpe de estado.
A escolha do presidente da República passou a ser um processo secreto, distante do povo, uma ação entre amigos. Mesmo assim, golpe dentro do próprio sistema golpista, em agosto de 1969 o vice-presidente Pedro Aleixo foi impedido de assumir quando se manifestou a incapacidade física do general Costa e Silva.
Retomada a duras penas a ordem constitucional e democrática, situação de extrema gravidade ocorreu com o presidente Collor de Mello, que ousou afrontar princípios e normas constitucionais e a própria cidadania em iniciativas como o confisco de sofridas economias de famílias trabalhadoras e de classe média. Contra ele, por razões jurídicas, políticas e morais ergueu-se, quase unânime, a nação brasileira.
Agora, o pedido de impeachment da presidente Dilma Rousseff não tem nenhuma fundamentação jurídica. É um procedimento às avessas. Ao invés de partir de um fato jurídico – um crime de responsabilidade, afronta explícita à Constituição – parte de controvérsias políticas, inevitáveis e até mesmo desejáveis no contexto democrático, e sai, como a lanterna de Diógenes, em busca de uma fundamentação jurídica inexistente.
Preservemos a Constituição e o Estado Democrático de Direito que ela instaurou, como conquista histórica e cultural de nossa grande e querida pátria brasileira.
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(Artigo inicialmente publicado pelo jornal “O Globo”)