O texto abaixo é o meu depoimento, que integra a coletânea do livro Trajetórias, em homenagem aos 80 anos do nosso companheiro Célio de Castro. O livro foi lançado ontem, em bela cerimônia em homenagem à memória do grande amigo.
Patrus Ananias
Célio de Castro tinha muitas paixões. A paixão pela medicina; a paixão pela política; a paixão pela palavra. Tantas mais… Entre as paixões literárias, Guimarães Rosa se destacava: deu-me, certa vez, como presente de aniversário, a primeira edição de Sagarana, com belíssima dedicatória. Lia e relia Grande Serão: Veredas e ficávamos horas conversando sobre os caminhos e mistérios desta obra prima da literatura brasileira e universal. O saudoso Cezar Campos, grande e inesquecível secretário de Saúde do povo de Belo Horizonte, participou de algumas dessas prosas que iam varando a noite. Falamos, numa dessas conversas roseanas, sobre a Terceira Margem, conto antológico de Primeiras Estórias. Célio e Cezar ficaram explorando as implicações psicanalíticas do belo texto. Quando as forças da intolerância e da repressão explodiram o carro de Célio – penso que foi o último que ele teve! – lá estava, vítima também, o livro maior do mineiro de Cordisburgo. Eram amigos inseparáveis!
Célio e eu estivemos juntos em muitas lutas e caminhadas. A luta contra a ditadura; a luta pela liberdade e autonomia dos sindicatos; as lutas pela Anistia, pela Constituinte, pelas Diretas-Já. Juntos caminhamos pelas ruas e becos de Belo Horizonte na campanha memorável de 1992 e nos governos – meu e dele, nossos – que mudaram os rumos da história de Belo Horizonte e abriram as portas da cidade para os pobres e excluídos.
De todas essas boas pelejas e andanças, restou uma bela amizade. Perguntei-lhe sobre o estadista que mais admirava. Respondeu-me, naquele momento, o nome de Ho Chi Minh. Alguns anos depois, lendo uma biografia do grande líder vietnamita, compreendi o porquê. Célio era um socialista com os pés, o coração e a cabeça, corpo inteiro, plantados pelo tempo histórico. Não abdicava da responsabilidade de ser um sujeito atuante e transformador de sua época.
Outras vezes já falei do testemunho existencial. O grande médico, plantonista durante décadas no Pronto-Socorro, jamais condicionou o atendimento médico, da mais alta qualidade, ao prévio pagamento. Tinha em relação ao dinheiro e aos bens materiais uma postura franciscana, gandhiana, hochiminiana. O desapego raiava os limites do desprezo.
Por tudo isso, e muito mais, Célio de Castro está vivo. Vivo no coração de seus familiares, amigos, pacientes; vivo no coração do povo de Belo Horizonte, dos pobres, dos militantes da liberdade e da justiça social. Cada um de nós vai contando a sua história para os nossos filhos, netos, bisnetos… E assim Célio não morre! Só morre quem é esquecido, quem “passou pela vida e não viveu”.
Voltemos ao início para fechar o arco da reflexão e do sentimento; voltemos a Guimarães Rosa para lembrar que “a morte é o sobrevir de Deus entornadamente” e perguntarmos e respondermos juntos: “o que é um pormenor da ausência? Faz diferença? Choras o que não devias chorar… A gente morre é para provar que viveu… As pessoas não morrem, ficam encantadas”. Célio viveu e continua encantado no coração e na memória de cada um de nós! Sopremos as oitenta velinhas!