A Pacem in Terris (Paz na Terra) e o contexto brasileiro na época de sua publicação

Posts recentes

nononono

novo

Partilho texto que elaborei como participante do evento promovido pelo Senado Federal sobre os 50 anos da  Encíclica Papal Pacem In Terris.

1.      A Encíclica

No dia 11 de abril de 1963, a menos de dois meses de sua morte, o Papa João XXIII, cuja canonização acaba de ser anunciada, surpreendeu o mundo com a publicação da encíclica Pacem in Terris.

A encíclica joanina começa inovando na sua abertura. Tradicionalmente os documentos pontifícios eram destinados à comunidade católica. João XXIII, após fazer as saudações de praxe, inclui, entre os destinatários da encíclica, “todas as pessoas de boa vontade”. Torna-se, assim, logo de saída, um texto ecumênico e dialogante. A inesperada e esplêndida saudação inaugural encontra ressonância e desdobramentos no corpo da encíclica. João XXIII convida a todos para os trabalhos de construção da paz: “As linhas doutrinais aqui traçadas brotam da própria natureza das coisas e, às mais das vezes, pertencem à esfera do direito natural. A aplicação delas oferece, por conseguinte, aos católicos vasto campo de colaboração tanto com cristãos separados desta sé apostólica, como pessoas sem nenhuma fé cristã, nas quais, no entanto está presente a luz da razão e operante a honradez natural”.

Na época em que a encíclica foi publicada havia um grande debate dentro da Igreja sobre a cooperação em questões políticas, econômicas, sociais e culturais com os não-crentes, especialmente os marxistas. Segundo os melhores exegetas e estudiosos da Pacem in Terris é exatamente nos militantes marxistas que o
Papa estava pensando quando escreveu “… cumpre não identificar falsas idéias filosóficas sobre a natureza, a origem e o fim do universo e do homem com movimentos históricos de finalidade econômica, social, cultural ou política, embora tais movimentos encontrem nessas idéias filosóficas a sua origem e inspiração. A doutrina, uma vez formulada, é aquilo que é, mas um movimento, mergulhado como está em situações históricas em contínuo devir, não pode deixar de lhes sofrer um influxo e, portanto, é suscetível de operações profundas. De resto, quem ousará negar que nesses movimentos, na medida em que concordam com as normas da reta razão e interpretam as justas aspirações humanas, não possa haver elementos positivos dignos de aprovação?”

O generoso e profético apelo ao diálogo entre pessoas, instituições e povos em prol do bem comum, do desenvolvimento e da paz não era vago e genérico. João XXIII estabelecia as bases necessárias para essa cooperação entre os seres humanos, no plano das relações internas das comunidades políticas nacionais e da comunidade mundial. O primeiro deles, o reconhecimento da dignidade de todos os seres humanos e, a partir daí, o que ele chama, em perfeita sintonia com a moderna linguagem jurídica, de direitos fundamentais, que são os direitos humanos constitucionalizados e positivados no ordenamento jurídico dos Estados. Nessa perspectiva, o histórico documento presta uma deferência à Declaração Universal dos Direitos Humanos, aprovada pela Organização das Nações Unidas, aos 10 de dezembro de 1948, e que se tornou uma referência e uma inspiração para os povos empenhados na afirmação dos princípios e valores democráticos.

Instigante a abordagem que João XXIII faz dos direitos fundamentais: em sintonia com as concepções republicanas do Estado e da Sociedade, o Papa da Paz reflete sobre os direitos integrando-os na perspectiva dos deveres, que se articulam com o “senso de responsabilidade” e o exercício da cidadania.

A encíclica insere-se na melhor tradição aristotélica e tomista, situando sempre a pessoa humana no contexto da comunidade. A liberdade é também e, sobretudo, a liberdade de “tomar parte ativa na vida pública”, colaborando na construção do bem comum, exercendo os direitos e deveres da cidadania.

Em sintonia com a Declaração Universal dos Direitos Humanos, a Pacem in Terris busca uma integração dinâmica entre os direitos e deveres individuais, os direitos e deveres políticos e os direitos e deveres sociais. A encíclica avança em questões que não foram tratadas, ou o foram de forma mais superficial, na Carta da ONU. Notável, por exemplo, a abordagem que a Carta de João XXXIII faz da liberdade de imprensa, vinculando-a e submetendo-a ao direito à informação, um dos pressupostos da cidadania: “Todo o ser humano (…) tem direito também à informação verídica sobre os acontecimentos públicos”. Emergem novas perguntas à luz desse direito fundamental: quem decide o que é notícia e prioriza os fatos e acontecimentos? O que as pessoas devem, querem e precisam saber? O direito à informação está vinculado à democratização dos meios de comunicação? Como se configura, no plano das comunicações, o direito à busca da verdade?

Entre os sinais dos tempos, sinais que marcaram a época em que a encíclica veio a público e compreendidos à luz dos Evangelhos e da Tradição cristã, João XXIII identifica inicialmente a ascensão econômico-social das classes trabalhadoras, o ingresso da mulher na vida pública, o fim do colonialismo e das discriminações sociais. Nas palavras do Papa João: “…dentro em breve já não existirão povos dominadores e povos dominados (…) então superadas seculares opiniões que admitiam classes inferiores e classes superiores, derivadas de situação econômico-social, sexo ou posição política (…) todos os seres humanos são iguais entre si por dignidade e natureza. As discriminações raciais não encontram nenhuma justificação.”

Ainda entre os Sinais dos Tempos, o admirável texto elenca “a tendência (dos Estados) de exarar em fórmula clara e concisa uma carta dos direitos fundamentais do homem, carta que não raro é integrada nas próprias constituições (…) estatui-se como primordial função dos que governam a se reconhecer os direitos e deveres dos cidadãos, respeitá-los, harmonizá-los, tutelá-los eficazmente e promovê-los.”

No plano das relações internacionais, a encíclica acolhe e saúda a crescente compreensão “de que as eventuais controvérsias entre os povos devem ser dirimidas com negociações e não com armas”, assim como realça a importância da Organização das Nações Unidas – ONU, distinguindo que “um ato de altíssima relevância efetuado pelas Nações Unidas foi a Declaração Universal dos Direitos do Homem”.

Fica evidente o compromisso da encíclica e do seu autor com os fundamentos do Estudo Democrático de Direito: “Segue-se daí que a doutrina por nós exposta é compatível com qualquer regime genuinamente democrático”.

O exercício da autoridade legítima e democrática deve estar sempre a serviço das pessoas e da comunidade, da construção da cidadania e dos sujeitos políticos: “A autoridade é sobretudo uma força moral. Deve, pois, apelar à consciência do cidadão, isto é, ao dever de prontificar-se em contribuir para o bem comum”.

É digno de registro a importância que a encíclica confere à participação das pessoas na vida política e social do país, apontando, ainda que não explicitamente, para o modelo da democracia participativa: “É certamente exigência da sua própria dignidade de pessoas poderem os cidadão tomar parte ativa na vida pública (…) o homem atual se torna cada vez mais cônscio da própria dignidade e que esta consciência o incita a tomar parte ativa na vida pública do Estado (…) dever de participarem ativamente da vida pública e de contribuírem para a obtenção do bem comum de todo o gênero humanos e da própria comunidade política”.

João XXIII, em síntese, apresenta a necessidade e a urgência da paz no interior das comunidades nacionais e da comunidade internacional e apresenta, como vimos de forma sucinta, o roteiro para que possamos alcançá-la. Defende as minorias: “Deve-se declarar abertamente que é grave injustiça qualquer ação tendente a reprimir a energia vital de alguma minoria, e muito mais se tais maquinações intentam exterminá-la”, bem como os refugiados políticos, expressando diante deles e do seu sofrimento a sua “profunda amargura”.

Cinqüenta anos depois, a Paz na Terra continua admiravelmente atual e contemporânea. É um dos mais importantes textos para compreendermos os desafios e as possibilidades do nosso tempo e tem uma notável inserção na realidade brasileira e latino-americana. Vamos guardá-la “no coração e na memória” e por em prática os seus luminosos ensinamentos.

2.      Contexto brasileiro na época da publicação da Encíclica

No Brasil, quando foi publicada a encíclica, estávamos no governo, já então presidencialista, superado o período breve e artificial do parlamentarismo, do Presidente João Goulart. Estávamos a pouco menos de um ano do golpe de 31 de março/1º de abril, que afrontou a encíclica em todos os sentidos. Os princípios, valores e procedimentos afirmados com sabedoria na Pacem in Terris foram rigorosamente agredidos pelo regime de força que se impôs no Brasil.

Em abril de 1963 o país ainda não vivia o quadro altamente radicalizado que marcou os últimos do governo Goulart e da Constituição de 1946. Mas seguramente as forças conservadoras mais retrógadas e descomprometidas com o processo democrático já planejavam o golpe. Por sua vez, as forças políticas e sociais mais progressistas lutavam pelas reformas de base: agrária, urbana, bancária e tributária. Reformas que, passados cinqüenta anos, ainda não foram efetivamente implementadas, porque não colocamos em prática um princípio muito caro à Tradição Cristã e presente na Pacem in Terris: o princípio da função social da propriedade.

Em 1963, a cooperação entre cristãos, mais especificamente os católicos, e os marxistas, tema, como vimos, trabalhado na encíclica, estava colocado em várias frentes: na Frente Parlamentar Nacionalista que unia os parlamentares comprometidos com a defesa das riquezas e dos interesses do Brasil, numa perspectiva de afirmação da nossa soberania e da nossa identidade nacional. Colocava-se entre os que trabalhavam pelas reformas de base. Era um tema muito presente em entidades como Ação Popular – AP, onde se colocaram muitos militantes oriundos da Ação católica, especialmente da JUC – Juventude Universitária Católica. A questão colocou-se também para militantes sindicais vinculados à JOC – Juventude Operária católica e à ACO – Ação católica Operária. Os marxistas, especialmente através do Partido Comunista, então na clandestinidade, tinham presença nos movimentos e entidades sindicais. Ocorreram importantes alianças entre cristãos católicos e comunistas em importantes sindicatos. Recordo-me, entre outros, do sindicato dos Mineradores em Nova Lima, em Minas Gerais, sob a liderança do notável líder sindical católico José Gomes Pimenta, o Dazinho. Experiência semelhante ocorreu entre os bancários mineiros referenciados em duas fortes lideranças que sempre mantiveram abertas as portas do diálogo e da cooperação: o veterano líder comunista Armando Ziller e o jovem líder sindical católico, Antônio Faria.

Nessa época os católicos e comunistas cooperavam e, às vezes, disputavam, na fundação dos novos sindicatos de trabalhadores rurais. Era também o tempo dos Grupos dos Onze, sob a liderança de Leonel Brizola e das Ligas Camponesas, articuladas pelo advogado Francisco Julião.

Foi também um período de efervescência dos movimentos sociais urbanos na luta pelo direito à moradia e pela legalização fundiária e urbana das vilas e favelas. Lideranças e militantes católicos e marxistas ora atuavam juntos e somavam em prol dos direitos dos pobres e trabalhadores, ora divergiam por razões táticas e/ou estratégicas.

No interior do governo Goulart, San Tiago Dantas já intuía os riscos do golpe e buscava construir uma frente mais ampla, de centro-esquerda, de apoio ao governo e às reformas. San Tiago procurava, ainda, dentro do governo, uma linha mais propositiva, dialogante e eficaz que alguns historiadores chamam de “esquerda positiva”. San Tiago Dantas, embora não fosse um católico militante, tinha canais de diálogo e amizade com pessoas como o pensador católico Alceu Amoroso Lima e o então bispo-auxiliar da arquidiocese do Rio de Janeiro, Dom Helder Câmara.

Outra instigante frente de cooperação entre católicos e não-católicos se deu quando o não-crente Darcy Ribeiro, o extraordinário implantador da Universidade de Brasília, entre tantas outras instituições e realizações notáveis, implantou na referida Universidade o Instituto de Teologia, em parceria com os religiosos dominicanos, sob a liderança de uma figura também admirável: Frei Mateus Rocha. Darcy Ribeiro nas suas Confissões atribui o êxito dessa cooperação aos bons augúrios do Papa João XXIII.

Cabe registrar que em linha de colisão com os ensinamentos de João XXIII na Mater Et Magistra e na Pacem in Terris, setores direitistas da Igreja, sob a liderança de Carlos Lacerda, faziam oposição sem fronteiras e limites éticos ao governo João Goulart e às propostas de reformas. Reformas estas, que, como vimos, deitam profundas raízes no humanismo cristão católico.

As prudentes e sábias orientações de João XXIII, reafirmando e ampliando o que dissera dois anos antes com a Mater Et Magistra, ensinamentos inspirados nos Evangelhos e no testemunho de Jesus, não prevaleceram no Brasil em 1963. Fomos para o golpe e para o longo e terrível período da ditadura.

Seremos capazes de ouvi-las e aplicá-las à nossa realidade brasileira em 2013? A questão está aberta. As recentes manifestações que mobilizaram o Brasil, no que elas tiveram de melhor em termos de civismo e sensibilidade social, parecem-me em sintonia com as diretrizes perenes de Pacem in Terris.