Encontros ocorrem em nossas vidas que se desdobram no tempo.
Tornam-se presentes para sempre. Acompanham-nos vida afora, tornando presente o
passado e ajudando-nos a modelar o futuro. Confirmam e aprofundam de forma indelével
os princípios e valores que pautam a nossa trajetória existencial. Abrem nossos
horizontes e possibilidades, novas trilhas e veredas no grande sertão de nossas
buscas e andanças.
Encontros que se abrem e florescem n’As Grandes Amizades de
que fala Raissa Maritain na sua obra enternecida.
As portas para o meu encontro definitivo com o professor
José Fernandes Filho se abriram quando fui por ele convidado, no alvorecer do
ano de 1975, para integrar a sua equipe na Secretaria de Estado de Educação de
Minas Gerais.
Tivemos, antes, bons, mas breves contatos na Faculdade de
Direito da UFMG; eu, estudante, ele, professor de Direito Administrativo. Não
tive o privilégio de tê-lo como professor. Conversamos, algumas vezes, no escritório
onde exercia a advocacia. Foram meus professores na Casa de Afonso Pena, os
meus colegas: José Edgar Amorim Pereira, um dos amigos mais próximos, amigo
irmão do Professor José Fernandes, e Ariosvaldo de Campos Pires, que me acolheu
nesta Casa.
O escritório era um espaço de inteligência e cultura
jurídica e de fidelidade aos valores éticos e democráticos. Ali estavam também
Oswaldo Machado dos Santos, professor e diretor da Faculdade Mineira de Direito
da PUC Minas, e que me introduziu na advocacia e no magistério trabalhista;
João Luiz Leite Praça, profissional exemplar no alargado campo do Direito
Civil, que, assim como Oswaldo Machado, se tornou para mim um amigo muito
especial; Luiz Carlos Mafra Cavalcanti, que partilhava com o advogado José
Fernandes Filho os espaços do Direito Administrativo; Arnaldo Afonso Barbosa,
que também buscou os caminhos do magistério…
Tínhamos em Belo Horizonte, com boas reflexões intelectuais
e militância política, a chamada esquerda católica. Pessoas que se formaram na
Ação Católica e que buscavam aplicar os ensinamentos de Jesus – atualizados por
pensadores e pessoas de pensamento e ação, como Jacques Maritain, Emmanuel
Mounier, o Padre Lebret, os luminares do Concílio Ecumênico Vaticano II, os
papas hoje santificados João XXIII e Paulo VI –
e levá-los aos espaços do movimento estudantil, da política partidária,
dos movimentos sociais. Destacava-se no plano nacional, a figura de Alceu
Amoroso Lima, o sempre admirável Tristão de Athayde. No plano estadual,
tínhamos duas personalidades de referência: o acadêmico, escritor, professor
Edgar de Godoi da Mata-Machado, e o líder sindical e popular José Dazinho Gomes
Pimenta, que marcou, em 1975, inesquecível presença na posse do Secretário de
Estado da Educação.
Em tempos diferentes e com as dosagens próprias do ser
humano, o Professor José Fernandes e eu bebemos nessas mesmas fontes de
inspiração.
Uma boa surpresa, até mesmo uma dúvida, perpassou os setores
identificados com a esquerda cristã católica de Belo Horizonte, se espalhando
pelos territórios das minas e dos gerais – é ele mesmo? É o José Fernandes do escritório,
da Universidade? Era ele mesmo. O convite para assumir a Secretaria de Estado
de Educação, que expressava a dimensão mais humana e os compromissos
nacionalistas e com a abertura democrática do governador Aureliano Chaves, teve
o empenho pessoal do colega e amigo Professor Márcio Garcia Vilela, escolhido
então como Secretário de Governo.
Era o início de uma grande e bela aventura!
Vivíamos os tempos sombrios da ditadura, da vigência do Ato
Institucional nº 5 e do seu trágico séquito, bem previsto pelo Professor Pedro
Aleixo: prisões arbitrárias, torturas, mortes; vidas e corpos desaparecidos; a
censura aos meios de comunicação, à cultura, às artes. Censura também e
repressão direta, violenta quase sempre, nas escolas e universidades; ao
movimento estudantil; aos movimentos e organizações sociais; aos sindicatos de
trabalhadores. Tempos em que convivíamos com a cassação de mandatos e a
suspensão de direitos políticos.
Sopraram então os primeiros e tímidos sinais da “abertura
lenta, gradual e segura” anunciada pelo general Ernesto Geisel.
É nesse contexto de incertezas, ainda marcado pelos
desmandos do poder arbitrário, que o Professor José Fernandes Filho, homem da
escuta e do diálogo, do respeito às diferenças e aos diferentes, construtor de
pontes, consensos e possibilidades compartilhadas, sempre fiel aos princípios e
valores democráticos, dos direitos fundamentais e da justiça social, é nesse
quadro de desafios que ele é convidado para dirigir a Secretaria de Estado da
Educação. Antes da posse, na véspera, o primeiro confronto: os órgãos de
segurança, sempre confusos e difusos, SNI à frente, vetam o nome do Professor
Hugo Pereira do Amaral para o cargo de secretário-adjunto, o segundo nome na
estrutura hierárquica da Secretaria. O professor Hugo do Amaral, professor de
filosofia na UFMG, concilia a sua notável formação acadêmica com a sua
militância forjada na Ação Católica, na Ação Popular. Trabalhou com o Professor
Edgar da Mata-Machado na Secretaria de Trabalho e Cultura Popular. Era clara e
inequívoca a sua posição de resistência em face do golpe e da opressão. José
Fernandes não transige. Sem a presença do Professor Hugo, não assume o cargo. O
governador Aureliano Chaves e o Secretário de Governo Márcio Garcia Vilela
entram, em sintonia com o Secretário José Fernandes, no circuito da repressão.
Conseguem levantar o veto. É a primeira vitória do secretário José Fernandes
Filho para afirmar a sua independência e para coesionar de vez a sua
diferenciada equipe, mas unificada em torno da democracia e dos direitos
humanos.
Além do professor Hugo, o secretário compôs uma equipe
formada por pessoas comprometidas com a educação e a cultura, com os princípios
éticos e democráticos. Pessoas dotadas de refinada sensibilidade em face das
injustiças e desigualdades sociais. Alípio Pires Castello Branco, o
interlocutor e amigo muito especial que acompanhou o secretário nos três
momentos que ele, Alípio, reputa como “os mais significativos da sua trajetória
como administrador público: secretário-geral da UFMG; secretário de Estado da
Educação e desembargador no TJMG. O amigo e compadre Alípio, arquiteto,
urbanista, sempre atento às questões humanas e sociais onde a Educação emerge
com a sua importância transcendental; Alípio servidor público admirável,
honesto, competente em todas as frentes e cargos que ocupou.
João Baptista Villela, professor na velha e sempre renomada
Casa de Afonso Pena, onde marcou presença pela sua competência e rigor, pela
fidelidade a si mesmo e aos parâmetros éticos que pautavam a sua existência,
decorrentes de suas leituras, estudos e reflexões pessoais, que o levavam
muitas vezes a posições personalíssimas, mas sempre dignas e coerentes.
Marcos Antônio Noronha, até poucos anos anteriores, o
atuante e profético bispo de Itabira, o amigo pessoal e interlocutor de Dom
Helder Câmara, precursor das novas diretrizes da Igreja, das comunidades
eclesiais de base, das pastorais comprometidas com a vida, com o bem comum, com
a dignidade de todas as pessoas humanas.
Fernando Dias Costa, ex-secretário Municipal de Educação de
Belo Horizonte, cristão exemplar, leitor atento de Tomás de Aquino; presença
marcante em outros contextos históricos e culturais como o jornal católico O
Diário, onde se tornou, nos anos 1940, amigo para sempre do professor Edgar da
Mata-Machado.
Conosco esteve também na Secretaria, sempre atento,
comprometido e bem-humorado, o presidente emérito desta Academia, o notável
escritor e contador de “causos”, mas, sobretudo, esplêndida pessoa, Olavo Celso
Romano.
Tantos mais: o advogado, discípulo do professor José
Fernandes nos caminhos do Direito Administrativo, Carlos Mota. E como esquecer
o chefe de gabinete, Luciano Muller Ferreira da Silva? O nosso revisor, amante
da língua portuguesa, Antônio Abreu Rocha? Presentes entre nós, sempre amigos,
companheiros fraternos, que me ajudaram a vencer os desafios e pelejas no
Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome, José Maurício Salgado e
Jaime Blay.
Lembremos dos consultores, assessores altamente qualificados,
como os inesquecíveis, sempre presentes Bartolomeu Campos de Queirós; Maria
Eugênia Dias de Oliveira; Miguel Arroyo; Morse Belém Teixeira; Sônia Viegas.
A equipe altamente qualificada da Secretaria ainda mais se
alargava nas suas reflexões e posicionamentos, nos encontros mais reservados,
fora dos espaços públicos, com pessoas que se opunham à ditadura e que podiam
contribuir com as suas reflexões políticas, culturais e educacionais. O mais
constante deles foi Frei Betto, recém-saído da prisão, amigo pessoal do professor
Hugo. Estiveram conosco, entre outros, o professor Aluísio Pimenta, ex-reitor
da UFMG, prestando serviços educacionais no exterior, impossibilitado que
estava de lecionar e trabalhar no Brasil; o nosso confrade Ângelo Oswaldo de
Araújo Santos, marcando então a sua presença no cenário cultural de Minas e do
Brasil através do Suplemento Literário do Minas Gerais.
As diretrizes que pautaram as nossas ações na Secretaria
foram muito bem delineadas no memorável discurso de posse do Secretário, uma
síntese belíssima do que melhor se produziu nas reflexões sobre a educação no
Brasil, de Anísio Teixeira a Paulo Freire.
“O apelo e o desafio que temos de responder começam pela
indagação acerca do quanto e do como podemos dar ao desenvolvimento social,
econômico e político do nosso meio e de nossa Pátria. Então, o sistema
educacional a ter vigor, há de ir além da mera transmissão de conhecimentos
através de programas não raro tão belos quanto irreais. Educar, hoje, é, ao
mesmo tempo, conscientizar e construir pessoas. Importa, antes de tudo, manter,
despertar e suscitar a exercitação do espírito crítico, Não tem sentido a redução
do educador à condição de máquina produtora de textos ou mera repetidora de
palavras. O educador tem de analisar, escutando e perscrutando. Ao educar e
para educar, deve o mestre educar-se. Mestre que não vejo só na sala de aula,
no laboratório, na direção de equipes de vários gêneros, mas onde quer que lhe for
atribuída parcela, por mínima que seja, de responsabilidade na condução do
processo pedagógico. O pedagogo recebe lições daquele ou daqueles a que lhe
cumpre ensinar. Há uma pedagogia que se acha ou que se irá descobrir no
educando. Consciente disso, o educador questiona a si próprio, suas teorias, seu
saber e seu como saber e transmitir. Ensinando, aprende, aprendendo, ensina…”
“Cabe ao Poder Público tratar a Educação como fator de
democratização de condições e instrumento de ascensão social, como estímulo ao avanço
tecnológico e à capacidade inventiva – enfim, como instrumento de busca de
novas alternativas para os caminhos do homem e da sociedade”.
Durante um período inesquecível para mim e para todos que o viveram,
trabalhamos juntos, verdadeiro trabalho de equipe solidária, coesa, sob a
esplêndida liderança do secretário José Fernandes Filho. Aprendi muito. Lições
que guardo, a exemplo de Maria, a mãe de Jesus, no coração e na memória.
Estiveram sempre presentes comigo nos cargos públicos que exerci e exerço. A
primeira delas, que pauta as demais, é a fidelidade às diretrizes da Ética, em
palavras mais simples e direitas, mais próximas do quotidiano das pessoas, a
honestidade, a transparência, a prestação de contas.
O secretário José Fernandes exigia de si mesmo e dos que com
ele trabalhavam o mais absoluto rigor no uso do dinheiro e bens públicos.
Cobrava também eficácia na implementação das decisões tomadas. Ficava
visivelmente aborrecido se, no fechar das contas no final do ano, os recursos
públicos não haviam sido devidamente aplicados de acordo com as normas e
previsões orçamentárias.
Ensinou-me, ensinou-nos a confrontar a burocracia em ação
diária e permanente, a não guardar processos na gaveta. Deveriam ficar sempre
sobre a mesa, bem visíveis, a nos questionar sobre os encaminhamentos devidos.
Na mesma linha, evitar, entretanto, as leituras superficiais e apressadas. Cada
processo, cada solicitação escrita ou mesmo verbal, a buscar o seu lugar e
desdobramentos, deveria ser objeto de acurada atenção para que os procedimentos
se fizessem da forma mais adequada e eficaz. Nas suas orientações ficava bem
claro que cada processo trazia consigo, de forma silenciosa, mas eloquente,
dramas, sofrimentos, esperanças humanas.
Não me sai da lembrança o firme questionamento, ainda que as
vezes bem-humorado, de refinada ironia, aos despachos superficiais e
apressados, movidos pelo som canino do “ao, ao’..” Ao senhor sicrano, ao doutor
beltrano. Os “ao aos” que faziam, e certamente continuam fazendo, os
encaminhamentos quase sempre voltarem intactos ao ponto de partida.
Mestre também na dignidade dos procedimentos, José
Fernandes, no exercício da função pública em tempos marcados pela presença do
poder autocrático, sabia se impor e, se necessário, contrapor às palavras e
ações daqueles que buscam guarida nos procedimentos escusos que caracterizam os
regimes ditatoriais.
Vivi, como assessor parlamentar, uma situação inusitada,
reflexo daqueles tempos sombrios que encontravam nos espaços abertos e libertários
da Secretaria um luminoso e anunciador contraponto. Uma demanda do então presidente
da Assembleia Legislativa de Minas Gerais não pôde ser acolhida por se
contrapor aos princípios legais e éticos. Recebi do presidente da Assembleia um
telefonema agressivo. Começou dizendo: “O ministro Armando Falcão precisa saber
o que está acontecendo na Secretaria de Educação de Minas Gerais, tomada por
gente de esquerda…” E foi por aí afora aos brados e provocações. Respondi,
buscando, a exemplo do secretário, o equilíbrio entre a serenidade e a firmeza.
“O senhor preside a Assembleia Legislativa de Minas Gerais. Pela dignidade do
cargo que ocupa, o ministro da Justiça, com certeza, vai atendê-lo; leve a ele
as suas denúncias”. “Dispenso os seus conselhos”, gritou desligando o telefone.
Ato imediato, acionou, não o ministro da Justiça, mas o governador Aureliano Chaves.
Repassou a ele, certamente na sua versão, o tenso teor da nossa conversa. No
exato momento da ligação, o secretário José Fernandes despachava com o
governador. Assim que retornou à Secretaria, chamou-me ao seu gabinete. Fui com
a firme determinação de não criar dificuldades e colocar o meu cargo à
disposição. Pediu-me que contasse o ocorrido. Relatei o áspero diálogo e as
causas que o motivaram. As razões pelas quais o pleito não fora atendido. Ele
ouviu com atenção. O retorno que recebi aquece até hoje o meu coração. “Você
agiu corretamente. Não podia ser outra a sua conduta. Estou solidário, continue
agindo assim nas suas funções. Vou levar a nossa posição ao governador e ele
vai compreender”.
Cresceu ainda mais a minha compreensão sobre a grandeza moral
e compostura política do homem que nos liderava. Eu era jovem. Lições que nos
marcam para sempre. Respeito às diferenças, sim; delicadeza sempre; subserviência
nunca.
Tivemos na Secretaria, além de um notável aprendizado
político e democrático, ousadas reflexões, propostas e ações no campo
pedagógico. Circulavam e ganhavam conteúdos e projetos as ideias dos que
ousaram pensar a educação no Brasil, vinculada à nossa realidade para
transformá-la e humanizá-la. Anísio Teixeira, Lourenço Filho, Fernando de
Azevedo, Cecília Meireles, todos os que assinaram o manifesto da Escola Nova de
1932, reiterado em 1959. A ditadura não nos impedia de dialogar com a obra e os
procedimentos de Paulo Freire, de Darcy Ribeiro, de Magda Soares.
Ao mesmo tempo em que construíamos e ampliávamos escolas
pelos territórios mineiros, buscávamos novos caminhos pedagógicos, novos
horizontes de aprendizado e convivência para as nossas crianças e os nossos
jovens em sintonia com as professoras e professores, trabalhadoras e trabalhadores
da educação, em todas as suas dimensões.
Outro momento inesquecível, embora marcado pelos tristes
sinais da violência e da repressão: a tentativa de realização em Belo Horizonte
do Encontro Nacional dos Estudantes – o 3º ENE.
A violência contra os estudantes começou cedo, na véspera,
com as paradas e revistas nos ônibus. Prosseguiu nas praças e avenidas da nossa
Capital, chegando ao interior das Igrejas onde os jovens militantes buscavam
refúgio. A maior concentração ocorreu na Faculdade de Medicina da UFMG, logo
cercada pelas forças de repressão.
Era um sábado ou domingo; um feriado talvez. O fato é que a
Secretaria não estava funcionando. Mas o secretário José Fernandes lá estava
trabalhando, examinando e encaminhando processos. Fui ao seu encontro para
informá-lo do que estava acontecendo e do anúncio de ocorrências mais graves e
violentas. Ele me ouviu, como sempre, com atenção, fez algumas perguntas,
ponderações. Mas não titubeou. Foi ao encontro do governador Aureliano Chaves.
Não sei bem o que conversaram. Faltam, às vezes, os registros da memória,
anotações que se perdem. O que sei, guardei, mais uma vez, no coração e na
lembrança: o secretário se dirigiu à Faculdade de Medicina onde os estudantes
estavam sitiados. Conversa com os militares, conversa com as lideranças do
movimento. Lá ficou. Saiu de lá junto com os estudantes, devidamente
enfileirados, e foi com eles nos ônibus policiais para acompanhar os
depoimentos e evitar as práticas de violência, constrangimentos, torturas. Esse
comportamento exemplar do secretário mereceu, entre muitos outros, referências
elogiosas de Alceu Amoroso Lima, crítico elegante, mas vigoroso da ditadura e
de suas práticas abomináveis.
Não posso também esquecer o trágico acidente com um ônibus
escolar que tirou a vida de 20 crianças e adolescentes. Crianças pobres, alunas
e alunos de escola pública em Santa Luzia. Era um passeio, uma excursão escolar.
A presença do secretário José Fernandes marcou-me profundamente.
Presença junto aos familiares das crianças, presença na
medicina legal, nos momentos de maior dor e tristeza no reconhecimento dos
corpos ainda em formação; presença junto à comunidade escolar, presença nos
velórios, nos sepultamentos dos corpinhos enfileirados no cemitério. Presença
na celebração religiosa do sétimo dia.
Foi no cargo de titular da Secretaria da Educação que José
Fernandes viveu a maior perda de sua vida: o filho José Arnaldo. O sofrimento,
por nós, pela sua equipe, testemunhado e partilhado, foi vivido com intensidade
e fé. Viveu e vive na dignidade da dor a frase de León Bloy: “sofrer passa, ter
sofrido não passa nunca”. Dois textos comoventes celebram a memória sempre
presente do José Arnaldo na obra Minha Candeia. No belo e tocante artigo que publicou
no jornal Estado de Minas, A dor humana, mestre José Fernandes nos ensina.
“A dor humana e a capacidade de sua superação são forças de
atração que somam e aglutinam; jamais se repelem. Uma e outra escapam ao severo
escrutínio dos videntes e sábios. As duas advertem: vivemos em terra calcinada,
onde muitos dependem de nós.”
Não acompanhei tão de perto, como gostaria, o outro momento,
que bem mais se prolongou, vivido pelo desembargador José Fernandes Filho no
Tribunal de Justiça de Minas Gerais. Tribunal que presidiu com total entrega,
dedicação e competência, como aliás foi sempre do seu feitio. Mas também não me
ausentei. Acompanhei, ainda que muitas vezes à distância, mas com a atenção
própria das grandes amizades e admirações, o seu trabalho eficaz para tornar o
Poder Judiciário mais ágil, transparente e, sobretudo, mais próximo das pessoas,
comprometido sempre com o Estado Democrático de Direito e com a efetiva
aplicação dos Direitos Fundamentais
Mereciam, merecem sempre especial atenção e carinho os
empobrecidos e marginalizados. Assim foi o seu esforço admirável na implementação
e efetiva presença dos Juizados de Pequenas Causas.
O país carece, urgentemente, de Justiça rápida e, acrescento
eu, gratuita. O pagamento de custas ao Estado ou a servidor dele é praxe que
afronta o regime republicano, na medida em que eletiza a justiça, prestante aos
poderosos; negada, de fato, dos dela mais necessitados.
O seu testemunho – essa me parece a palavra adequada aos que
se entregam por inteiro, doação plena, às suas responsabilidades públicas –, o
seu testemunho no Tribunal de Justiça do nosso Estado, emerge com clareza no
seu livro Minha Candeia.
Temos nessa obra, além de muitos outros textos da maior
relevância jurídica e literária, os dois pronunciamentos de posse. Falamos
sobre o discurso que abriu um novo e inolvidável capítulo na história da
Secretaria de Estado da Educação. O outro texto histórico é da posse como
desembargador.
“Vejo como fundamental, se não salvadora, atitude do Poder
Judiciário que, em nome dos superiores valores da vida, ou dos direitos
fundamentais do homem, se antecipasse ao tempo, madrugando em soluções ainda
não contempladas explicitamente pelo legislador. Não o quero, obviamente, a
substituir o Legislativo, usurpando-lhe funções, e, assim, subvertendo o
funcionamento harmônico dos Poderes. Mas não posso vê-lo também indiferente e
passivo, bastando-se com o direito positivo, mesmo quando, por omissão deste,
pareça autorizada decisão impeditiva da construção da verdadeira justiça.
Creio num Poder Judiciário que busque na qualidade da vida,
na dignidade da pessoa, nos direitos do homem, fundamento e inspiração para
suas decisões. Capaz, assim, de responder pronta e eficazmente a qualquer
injustiça, mesmo quando não elevada à categoria da ilegalidade. Disposto e
expedito para, através da construção jurisprudencial, humanizar normas e
estruturas, ou mesmo recusar-lhes eficácia, quando negatórias da justiça.”
Outros textos referentes ao Poder Judiciário encontram sua
especial acolhida no discurso de posse como presidente do Tribunal e na
homenagem póstuma ao seu grande amigo, referência no campo jurídico, mestre também no
exercício das virtudes que dão sentido e dignificam a vida, especialmente do
Direito Administrativo, Seabra Fagundes.
“Dois traços marcaram-lhe a vida e dão a dimensão de sua
personalidade.
Jamais pleiteou cargos ou posições: ao contrário, sempre os
recusou, como, por exemplo, quando declinou, por modéstia e escrúpulo, do
convite feito pelo Presidente Café Filho, para ocupar uma Cadeira do Supremo
Tribunal Federal.
O segundo traço da sua personalidade está na fidelidade ao
Direito e à ordem jurídica, que naquele há de inspirar-se.
Pelo Brasil todo ressoa sua pregação legalista e pacifista.
Poderia recomendar o direito à desobediência, mas seria
incapaz de admitir qualquer violência, partisse da esquerda ou da direita.
Tive o privilégio de ser um de seus restritos confidentes.
Jamais o vi vencido. Sempre acreditou na economia do bem e
no imenso poder do homem de gerar mudanças.
Dotado de profunda religiosidade – nunca amesquinhada por
práticas piegas – foi temente a Deus, até o fim.
Com a humildade dos santos e a modéstia dos sábios, cresceu
e fez crescidos todos que com ele conviveram”.
Minha Candeia expressa o educador, o jurista, o juiz/desembargador em relação amorosa com a língua pátria, ou melhor, a língua mais presente no território nacional, sem desconsiderarmos outras línguas faladas entre os povos indígenas.
Minha Candeia abre as portas para que possamos compreender
as diretrizes onde se manifestam as razões do coração processadas pela
inteligência comprometida com a vida e o bem querer.
Bem-vindo à Casa de Alphonsus de Guimarães, Escritor José
Fernandes Filho. A sua presença, por sua história e por sua contribuição à
expansão do conhecimento e do saber, da sabedoria, dos valores jurídicos do
direito e da justiça, ao desenvolvimento cultural de Minas e do Brasil,
dignifica e engrandece esta Casa. É mais um capítulo que se abre em sua bela e
fecunda existência.