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Academia Mineira de Letras

 

Discurso de recepção da professora Maria Antonieta Antunes Cunha pelo acadêmico Patrus Ananias

 

Bocaiúva, no início dos anos 1960, era uma pequena cidade bem típica do interior de Minas. No contexto da universalidade mineira, das diferenças convergentes de Minas – “Minas é muitas!” –, Bocaiúva se incluía com maior semelhança entre as cidades, cidadezinhas do norte, dos gerais, do sertão de Minas. Afinava ainda mais com aquelas por onde passavam as linhas e se erguiam as estações da Estrada de Ferro Central do Brasil, para sempre celebradas nos versos de Fernando Brant e Milton Nascimento.

 

                A vida se repete na estação

(…) E assim chegar e partir

São só dois lados

Da mesma viagem

O trem que chega

É o mesmo trem

Da partida

A hora do encontro

É também, despedida

A plataforma dessa estação

É a vida desse meu lugar

É a vida desse meu lugar

É a vida …

 

As pessoas, as notícias, os utensílios rurais e domésticos, os animais iam e vinham em viagens bem demoradas, sinuosas, que evitavam o confronto direto com as montanhas. Viagens que possibilitavam encontros e boas conversas estrada afora e a acolhida visual das paisagens sertanejas; bem verdes e plenas de vida no tempo das águas; recolhidas e fragilizadas no tempo da seca.

A nossa casa, a casa de meus pais, onde passei a infância e boa parte da juventude, era próxima à estação, em frente à linha da Central. Guardo bem preservados nos ouvidos, no coração e na memória os longos apitos dos trens, sobretudo nas noites, madrugadas, anunciando a chegada e a partida.

Bocaiúva da minha infância parecia fechada às possiblidades do desenvolvimento, que se tornara uma palavra muito presente no Brasil nos anos 1950. Era um mundo encantado em si mesmo. Não tínhamos telefone, que chega tímido na década de sessenta. Primeiro, eram só as ligações urbanas. Alguns anos depois, vieram as tentativas das ligações interurbanas. Era uma peleja… Se conseguíamos vencer a barreira dos 46 km que nos separavam da Central de Montes Claros, terra de Ciro dos Anjos e Darcy Ribeiro, abria-se então peleja maior: fazer chegar as nossas vozes e ouvir os que estavam em Belo Horizonte e além-fronteiras.

Mas nós nos bastávamos em Bocaiúva. Tínhamos os encontros, as celebrações, a Festa do Senhor do Bonfim. Seresteiros, mais ou menos afinados, acordavam as namoradas. Tínhamos a praça central, do vai e vem, dos primeiros olhares que se encontravam, das boas prosas. Tínhamos o Cine Paroquial, versão bocaiuvense do Cinema Paradiso, onde muitos de nós descobrimos a arte cinematográfica e o encanto, o prazer que proporciona.

 

Tínhamos o Bocaiúva Clube que não aceitava pessoas pretas. O contraponto eram os encontros e danças na Sociedade Beneficente Operária, onde marcavam presença as pessoas negras, as famílias operárias e dos ferroviários.

A televisão chegou com a seleção campeã do mundo de 1970. Se a seleção brilhava com Pelé, Tostão, Gerson, Carlos Alberto e cia; a televisão, recém-chegada, tremia, confundia imagens, apagava. A gente via algumas cenas, lances inesquecíveis de Pelé, mas não desligava o rádio, este sim companheiro mais antigo e com narração mais presente.

Em 1962, acolhendo os fluxos desenvolvimentistas da década anterior, tempos marcados pela presença das práticas e dos princípios democráticos que se impuseram às ameaças golpistas de 1954, 1955 e 1961, os bocaiuvenses elegeram um prefeito diferente. Diferente e bom. Dinâmico, empreendedor, tolerante, alegre, dançarino. Uma versão udenista, com dimensões locais, do pessedista que Diamantina deu a Minas e ao Brasil, Juscelino Kubitschek.  Wan Dick Dumont abriu as possibilidades e os horizontes bocaiuvenses. Iniciou o processo de calçamento. Abriu ruas, avenidas, praças. Construiu escolas. Priorizava as obras nos espaços habitados majoritariamente pelos adversários políticos. Gostava de visitá-los, surpreendendo-os muitas vezes. “É só um cafezinho…” Pacificou a cidade. O progresso de Bocaiúva se abre e desdobra sobre as bases do diálogo, do respeito às diferenças e aos diferentes, das práticas convivenciais e democráticas.

Em 1966, Wan Dick cumpre o último ano de seu mandato. Neste mesmo ano, a professora Maria Antonieta Antunes Cunha e seu companheiro, admirável, o médico Eunapio Antunes, aportam em Bocaíuva.

 

A mudança no campo político inicia agora no campo da educação, da cultura, das artes, da literatura sobretudo. Incide também na área da saúde, onde Eunapio, no antigo Hospital do SESP – Serviço Especial de Saúde Pública, estabelece novas e mais humanizadas formas de atendimento médico e de relações humanas.

Eu iniciava a antiga quarta série ginasial e dava os meus primeiros passos nos estreitos caminhos da militância política. Assumia, naquele ano de 1966, a presidência do Diretório Estudantil de Bocaiúva. Vivíamos os primeiros anos da ditadura.

A Professora Maria Antonieta promove uma revolução pacífica e amorosa na educação bocaiuvense. Torna a sala de aula um encanto. Não mais o espaço da monotonia, do desprazer; ora o desleixo, a bagunça, todos falando, gritando, ao mesmo tempo; ora o autoritarismo, o silêncio imposto. Antonieta, jovem professora, se afirma, calma e amorosamente, pela qualidade das aulas. Esplêndidas! O encontro da gramática, da Língua Portuguesa com a literatura, com as artes, com as mais diversificadas formas de manifestação; com os sentimentos, com a sensibilidade. A escuta. O estímulo. A partilha fraterna, generosa, alegre do conhecimento, do saber.

Os livros didáticos relativos à língua majoritária em nossos país – não podemos esquecer as línguas indígenas – que eram adotados no antigo curso ginasial de Bocaiúva eram muito ruins. Estancavam, nos espaços modestíssimos reservados à literatura, no parnasianismo. Sequer chegavam a Cruz e Souza e Alphonsus de Guimarães. E como denuncia Pedro Nava em suas memórias, o pior do legado parnasiano, o pior de Olavo Bilac.

 

 

Antonieta nos traz o livro de Celso Cunha, gramática mais dialogante e acolhedora; aberta ao modernismo, acolhendo a Semana da Arte Moderna, agora centenária, e seus desdobramentos, e dando-lhe o devido lugar, cada vez mais alargado, na História do Brasil.

Lembro-me bem. Se não foi na primeira, foi na segunda ou terceira aula, a leitura e a reflexão compartilhada da crônica de Paulo Mendes Campos: ‘O pombo enigmático’. Guardei de cor. Guardei no coração e na memória. O momento exige a leitura.

 

Na necessidade do cio (outono de abril) pombo e pomba marcaram um encontro de amor a voar no azul. Era de manhã.

– Às quatro azul em ponto casarei contigo no mais alto beiral.

– Candelária?

– Do lado norte.

– Tá.

Pois, às quatro azul em ponto, a pomba pontualíssima pousava no beiral. O pombo não.

                A pombinha que era branca arrulhava humilhada e ofendida e contemplava acima do campanário todas as possibilidades da rosa-dos-ventos. Na paisagem do céu voavam só velozes andorinhas garotas, e as andorinhas mais velhas enfileiravam nas cornijas como gente fina lá dentro nos dias solenes de missa de sétimo dia.

                Quatro e dez. Quatro e um quarto. Uma pomba sozinha, à mercê talvez de um lendário gavião. Sol e sombra. Um quarto de hora muito custa a passar para uma pombinha que aguarda o pombo no beiral para casar. Brisa. Fêmea humilhada. Ah, arrulhou de repente a pomba, ao distinguir indignada o pombo que chegava caminhando pelo beiral mais alto, do outro lado, lá onde um pouco além gritavam as esganadas gaivotas do mar do mercado. Irônica:

– Perdeste a noção do tempo ou do templo?

– Por Deus, perdão, pomba minha. Tardo mas ardo. Olha que tarde!

– Que tarde?

– Olha a tarde! Que azul! Que abril azul!

– Mas e eu?! Sozinha e branca!

– A tarde era tão bonita, pombinha, que era um crime voar, vir voando.

– E eu?! E eu?!

– A tarde era tão bonita, meu amor, que eu vim andando.

 

Sempre presentes comigo as perguntas, as reflexões que a professora, a partir do texto, levantava. O pombo não gostava da pombinha? Se gostava, por que atrasou? Inesquecível quando a professora Antonieta chamava a atenção para bem explicar os sentimentos do pombo em relação à natureza, à tarde, mas sobretudo, em relação à pomba, para a expressão presente na última frase: “meu amor”.

As pombas e as estrelas parnasianas são confrontadas por uma nova leitura poética da vida, a partir dos espaços e das relações em que vivemos, como aquela do poeta maior, o Carlos Drummond de Andrade, também presente já nas primeiras aulas:

 

Casas entre bananeiras

mulheres entre laranjeiras

pomar amor cantar

 

Um homem vai devagar

Um cachorro vai devagar.

Um burro vai devagar.

Devagar… as janelas olham.

Êta vida besta, meu Deus.

 

Todos os meses, ou a cada dois meses – são as pequenas danças da memória –, tínhamos que ler um romance incluído no rol da boa literatura, especialmente brasileira, e fazer um trabalho sobre ele: síntese da obra, críticas lidas sobre ela – pelo menos duas –; opinião pessoal, mais algumas questões relacionadas com os recursos gramaticais e linguísticos.

Um dos primeiros que li foi ‘Vila dos Confins’ de Mário Palmério. Quis fazer o trabalho seguinte sobre ‘Chapadão do Bugre’. Antonieta, a mestra da boa leitura, ponderou: não repita o trabalho sobre o mesmo autor. Têm muitos outros autores bons para serem lidos. Vieram então ‘Mar Morto’, ‘Vidas Secas’, ‘Fogo Morto’, este acompanhado pelo estímulo de Mário de Andrade: “Carece ler Fogo Morto. Carece”.

Não ousei fazer, naquela época, como fez o meu colega de turma e sempre amigo, o admirável escritor Luiz Fernando Emediato, o trabalho sobre Grande Sertão Veredas. Lembro-me bem: o trabalho do Emediato encantou a professora. Captou logo o talento presente. A minha história de amor com a obra de Guimarães Rosa começou aí. Com as bênçãos da professora Maria Antonieta.

Ela, com a total solidariedade do Dr. Eunapio – como falávamos respeitosamente – abria as portas e nos acolhia em sua casa. Total disponibilidade. Conversava, emprestava livros, orientava leituras. Uma vez assustei meus pais. Cheguei em casa carregado de livros. Período de férias. Tempo de boas leituras na Fazendo do Espinho. Saí da casa de nossa professora com ‘Corpo de Baile’, na época em volume único, bem consistente, que depois foi dividido em três: ‘Manuelzão e Miguilim’; ‘Noites do Sertão’; ‘No Urubuquaquá, no Pinhém’; a trilogia de José Lins do Rego: ‘Menino de Engenho’, ‘Doidinho’, ‘Banguê; as obras poéticas de Mário de Andrade e Carlos Drummond de Andrade.

Além das aulas inesquecíveis, prazerosas, dialogantes, participativas; das acolhidas fraternas em sua casa, dos livros emprestados e alguns doados, Antonieta acolheu o nosso convite para ministrar um curso de Literatura Brasileira, fora do horário e do espaço escolares, sem nenhuma remuneração. Pura disponibilidade e amor ao conhecimento literário e desejo de partilhá-lo.  Marcou-me neste curso o seu elevado e justíssimo apreço à obra de Graciliano Ramos. Ela acolhe a avaliação bem consensual sobre os nossos dois autores mais universais, mas muito bem fincados em nossa realidade nacional: Machado de Assis e Guimarães Rosa. Mas faz questão de registrar a proximidade, o encosto muito próximo neles de Graciliano; a importância, também a universalidade, bem nossa, bem brasileira, do romancista, do contador de estórias infantis, do memorialista de infância e ‘Memórias do Cárcere’.

Desdobrando o curso, apresenta-nos uma belíssima e refinada leitura da obra de Carlos Drummond de Andrade, a sua dimensão social.

Na apresentação do livro que escreveu sobre Carlos Drummond de Andrade, “um dos maiores nomes da literatura em língua portuguesa de todos os tempos”, Antonieta repõe o desafio do curso que nos deu:

Mas não se trata apenas de um extraordinário escritor: trata-se de uma testemunha privilegiada dos acontecimentos do século XX, homem que viveu intensamente seu tempo e durante toda a vida “tomou partido”, não foi um simples observador dos fatos, embora ele, no fim da vida, tenha intitulado a parte publicada de seu diário de O Observador no escritório.

O seu objetivo era mostrar que o abrir-se às questões da vida real, dos conflitos sociais da Política – especialmente nos livros que coincidem com o seu período de maior militância como ‘Sentimento do mundo’ (1940) e ‘A rosa do povo’ (1945) – não incidem sobre o conteúdo e a forma poéticas, sempre presentes e admiráveis. Em nenhum momento Drummond se torna autor panfletário, dogmático, partidário. O conteúdo político, a sensibilidade humana e social, a atenção aos desafios que a realidade nos impõe, presentes em tantas obras clássicas da literatura e das artes, não entorpece outras dimensões fundamentais do ser humano e das suas relações que transcendem a dimensão política e que confluem na verdadeira arte, mas sempre a partir da realidade efetiva dos viventes. Como na pintura social, humana, dos retirantes de Portinari.

Pedro Rodrigues, bocaiuvense fiel às raízes, adentrando agora os caminhos da literatura infantil, nosso colega de turma, diz sempre, com toda a razão, que Antonieta Cunha promoveu uma revolução cultural em nossa terra. Bocaiúva antes e depois dela. Não seríamos o que somos sem ela.

Não ficou muito tempo. Três anos pelos meus registros. Além da sala de aula, dos cursos sobre literatura nacional, da circulação de livros e ideias; dirigiu peças de teatro. Lembro-me de ver ‘Pluft, o fantasminha’ e o ‘Auto da Compadecida’. Sugeria-nos que fossemos ao Cine Paroquial assistir filmes como ‘Amor, sublime amor’.

Voltou a Belo Horizonte para continuar os estudos e a sua carreira acadêmica no Instituto de Educação. Universidade Federal de Minas Gerais. Mestre em Educação e doutora em Letras. Guardo, com carinho, a tese publicada, apresentada à Congregação da Faculdade de Letras da UFMG para doutoramento em Letras – Língua Portuguesa: ‘O Discurso Indireto Livre em Carlos Drummond de Andrade’. Recebi presenteado pela autora.

Vieram outras publicações: os quatro volumes de ‘Ler e Redigir’; ‘A Comicidade em Maria Clara Machado’; ‘Poesia na escola’; ‘Literatura Infantil – teoria e prática’; ‘Mergulhando na leitura literária – Proposta de experiência para o ensino fundamental’; ‘Livro – orientação básica para aquisição de acervos públicos e privados’, o já mencionado, belíssimo no seu despojamento e simplicidade, sobre Carlos Drummond de Andrade.

As obras têm como ponto de convergência o amor e o conhecimento da Língua Portuguesa, da literatura, com especial atenção para a literatura brasileira e a literatura infantil. Confluem no desejo manifesto, incontido mesmo, sempre presente, de partilhar o conhecimento, de estimular, sobretudo nas crianças e jovens, diretamente ou na conversa com as professoras e professores, o gosto, o prazer da leitura, a reflexão, a relação mais amorosa com a língua portuguesa, sempre na perspectiva da expansão das possibilidades interiores que devem se abrir na busca do encontro, do diálogo, da expansão também das possibilidades comunitárias, do projeto nacional brasileiro.

Bem sabemos, quase nunca cumprimos, que a abertura desse olhar e dessa sensibilidade para dentro e para fora de si mesmo, de nós mesmos, começa na infância, bem no início da trajetória existencial e comunitária. É aí que nasce e desenvolve o sentimento de nacionalidade, de pátria, de pertencimento fundado nas raízes territoriais, históricas, culturais. Antonieta, sempre atenta a essas dimensões, nos repõe a importância do folclore. Na sua enternecida e instigante obra ‘Literatura Infantil – teoria e prática’, capta com precisão, a partir do nosso folclore, a questão nacional:

Considerando a criança, o folclore é a melhor forma de verdadeiramente fazê-lo penetrar na alma do povo, de conhecer as vidas diferentes do país, de criar uma consciência nacional e o amor às nossas coisas.

Sabemos que o povo brasileiro – como muitos outros – vive um intenso processo de colonização cultural. Para comprovar isso, basta observar o filme, a música, a programação da televisão, assim como os modelos de personalidade, de heróis, de roupa, etc., a que estamos submetidos diariamente, através de todos os meios comunicação de massa. Nossos jovens estão, assim, formando-se ao embalo de uma leitura estrangeira. Não podem ser culpados de sua desvinculação de tudo que é nacional e apresente nossas raízes.

O contacto, desde muito cedo, com o material folclórico brasileiro será certamente uma das formas mais eficazes de combate à massificação e à colonização.

Esse contato ajudará também a descolonização que existe ainda em nível nacional: o brasileiro sente-se em geral colono dos dois grandes centros culturais e econômicos – Rio de Janeiro e São Paulo. O conhecimento da cultura regional permitirá não só a sua aceitação e valorização como também a própria integração no seu meio.

A professora Antonieta não dispensa a contribuição de autores internacionais no despertar das crianças, dos jovens, das pessoas em qualquer tempo e idade para o gosto da leitura e do conhecimento, mas valoriza, e muito bem, os nossos autores: Monteiro Lobato que inicia “a verdadeira literatura infantil brasileira”; Maria Clara Machado, Ariano Suassuna do ‘Auto da Compadecida’ e do compromisso com a cultura brasileira; Orígenes Lessa, Lygia Bojunga Nunes, Bartolomeu Campos de Queirós, que tinha o dom de falar em prosa e poesia para todas as idades; Graciliano Ramos, que se deixava levar pelo humor dos casos mirabolantes de Alexandre; Ana Maria Machado; o nosso saudoso, sempre presente, Ângelo Machado; Léo Cunha, o filho bocaiuvense que se impõe, a cada publicação, entre os clássicos da nossa literatura infantil; a poesia de Cecília Meirelles – ‘Ou isto ou aquilo’ –, de Henriqueta Lisboa – ‘O menino poeta’. Sempre hábil, Antonieta busca em autores nem sempre atentos aos olhares e corações das crianças, textos que se abrem às novas gerações: Guimarães Rosa, Jorge Amado, José Lins do Rego, Aníbal Machado, Raquel de Queiróz, Rubens Braga …

A vida e a obra da professora Maria Antonieta Antunes Cunha expressam, a cada momento, em cada publicação, em cada linha, em cada palavra, mais do que um compromisso, um amor profundo, existencial, à educação. Educação verdadeira, não demagógica, não promessa vazia de campanha eleitoral. Educação que se plenifica no conhecimento, no saber, na sabedoria; na abertura ao outro, aos outros, aos excluídos da boa escola. Educação que se desdobre no encontro com as realidades que nos cercam: política, econômica, cultural, ambiental; realidades que devem ser confrontadas também à luz dos valores éticos e do compromisso com as gerações presentes e futuras. Esta educação libertadora começa cedo, no alvorecer da vida, na educação infantil, nas creches, nos espaços que chamamos, com ternura, jardins da infância. Belíssima e comovente a atenção de Antonieta com esta formação integral desde os anos, meses inaugurais da existência. Mostra, na linha da refinada compreensão alcançada pelos gregos, como nos ensina Werner Jaeger na sua obra enciclopédica Paideia, a importância da música nesse período de formação. Importante também a poesia, o teatro, o desenho.

Vivemos no Brasil hoje, entre tantos outros, esse desafio fundamental para consolidarmos a nossa independência e a nossa soberania, para consolidarmos o projeto de uma nação que priorize a vida e a dignidade de seu povo. Temos o desafio de construir, desde a educação infantil até as universidades, um projeto pedagógico que considere, além da formação e valorização das professoras e professores, com maior atenção, os conteúdos pedagógicos. O que ensinar? Como ensinar? Como despertar nas crianças, nos jovens, nos adultos o gosto pelo estudo, pela leitura, o prazer de ampliar as possibilidades da inteligência, da memória, da razão, também dos sentimentos, dos desejos, da sensibilidade.

Como promover o encontro e o diálogo das disciplinas e dos saberes? Como interagir escola e sociedade? Como levar, a partir da escola até as pessoas, famílias, movimentos e organizações sociais, partidos políticos, à comunidade enfim, o gosto pela especulação das ideias que tanto agradava Riobaldo Tatarana.

A Educação como política pública fundamental ao bem viver das pessoas e ao bem comum coletivo se encontra e aprofunda vínculos com a cultura. É o que vive e ensina Antonieta. A educação e a cultura abraçam a Política na sua dimensão mais verdadeira; a Política como arte de promover o bem comum, que possibilita que os conflitos inerentes à sociedade dividida em classes e à própria condição humana se façam através de procedimentos democráticos, que melhor se manifestam através da democracia participativa e do exercício efetivo da cidadania e dos direitos fundamentais.

Mantive sempre com a minha professora os laços da fraterna amizade, sempre acompanhando as suas atividades, as suas publicações, o seu trabalho editorial, especialmente à frente da editora infanto-juvenil, a Miguilim; o testemunho de quem faz da Educação e da Cultura um compromisso de vida, a serviço do povo brasileiro e da humanidade.

Tivemos um novo encontro de trabalho quando, vereador em Belo Horizonte, fui escolhido pelos meus colegas, em 1989, para ser o relator da Lei Orgânica, que traduz no plano municipal as diretrizes da Constituição da República e da Constituição do Estado de Minas Gerais. A professora Maria Antonieta, fez com a dedicação e a competência de sempre, com a sua relação amorosa com a Língua Portuguesa e notável sensibilidade em face das políticas e das questões sociais, a revisão e adequações necessárias da nossa Lei Orgânica.

Em 1992, foi a caminhada por todos os cantos e recantos de Belo Horizonte que nos levou à Prefeitura da capital mineira. Comprometida e solidária com os nossos compromissos, Antonieta coordenou o nosso Programa no campo cultural. Duas dimensões sempre me fascinaram na belíssima história belorizontina. As lutas populares, de operários e trabalhadores, desde a fundação da cidade, que se recusaram à exclusão, a ficarem fora da Avenida do Contorno. As comunidades que margeiam a Contorno – a de Santa Lúcia, conhecida como Morro do Papagaio, do Aglomerado da Serra, do Alto Vera Cruz, da Pedreira Prado Lopes… – testemunham essa resistência que se traduziu na Lei do Pró-Favela. A outra vertente luminosa é a inquietação cultural sempre presente: as geração dos anos vinte…; cidade que formou Guimarães Rosa; a geração que emerge nos anos cinquenta; as gerações posteriores que se abrem, além da literatura, na ciência política, na pedagogia, na história, na filosofia, na teologia, na psicanálise; nas artes – na música, na pintura, no teatro, no cinema. Cidade do Grupo Corpo, do Grupo Galpão, do Armatrux, do Giramundo.

Antonieta torna-se a nossa Secretária Municipal de Cultura. Realiza um trabalho que repõe a nossa capital no cenário cultural do Brasil e do mundo.  Lembremos as realizações do FIT – Festival Internacional de Teatro de Palco e Rua, com a presença de grupos nossos e internacionais. Recordo-me bem dos franceses, que agitavam a cidade, que tão bem os acolhia, ocupavam as avenidas, as ruas, as praças, os parques. Era o teatro, a arte, entrando sem pedir licença, mas com toda a delicadeza, na vida, no quotidiano, no ir e vir das pessoas. Surpreendiam, inclusive, o prefeito, nas suas andanças pela cidade.

Lembremos a temporada de poesia que trouxe a Belo Horizonte, entre outras e outros, o poeta e místico nicaraguense, militante político e ministro da Cultura em seu país, Ernesto Cardenal; o FAN – Festival de Arte Negra, integrado às celebrações do tricentenário da morte de Zumbi dos Palmares.

A Secretaria de Cultura, em nosso governo, sob a liderança da professora Antonieta criou as bases e iniciou a implantação dos Centros Regionais de Cultura; promoveu a revitalização do Museu Histórico Abílio Barreto, dos teatros Francisco Nunes e Marília; a reforma do Museu de Arte de Belo Horizonte. Implementou obras e ações em parques urbanos como o da Lagoa do Nado. Inaugurou o Centro de Referência Audiovisual.

Iniciamos e muito avançamos nos preparativos para as comemorações do centenário de Belo Horizonte, a Capital do Século, a Capital da Paz. Instituímos uma política de memória em BH que, para além da multiplicidade de imóveis preservados, estabeleceu uma metodologia multidisciplinar de inventários que levou ao tombamento de conjuntos urbanos na Floresta, na Lagoinha, no Primeiro de Maio, em vilas e na área central.

Belo Horizonte saltou do 13º lugar em 1992 para 3º lugar em 1996 em número e qualidade de eventos culturais, segundo levantamento da EMBRATUR.

O caráter modelar, referencial de seu trabalho, fez com que ela prosseguisse à frente da Cultura belo-horizontina no governo de Fernando Pimentel, criando e inovando continuamente, com mais e mais projetos como o Festival Internacional de Quadrinhos, o FIQ.

As realizações materiais, os eventos explicitam, de um lado, a eficácia e o compromisso do governo. Há, todavia, um outro lado, menos visível aos olhos do corpo e que se manifestam com maior intensidade no território das sensibilidades, dos sentimentos, dos corações. O trabalho desenvolvido pela Secretaria Municipal de Cultura, com a sua dimensão pedagógica, ética, participativa, bem integrado com o orçamento participativo, calam bem fundo na alma dos belo-horizontinos. Era visível, no contato com as pessoas, a alegria, o orgulho de ser cidadã, cidadão de Belo Horizonte. Expandimos a dimensão cultural, literária, de justiça, de compromisso com a vida e com o próximo, com os empobrecidos, sempre muito presentes nos sentimentos e nas ações do povo de Belo Horizonte. Nesta perspectiva, talvez no melhor do nosso governo, a ação da Secretaria Municipal de Cultura foi fundamental. Tocava o coração ver Belo Horizonte, a sua gente, se encontrando consigo mesma. Com a sua História, e se abrindo ao futuro com a presença visível dos valores da solidariedade e do amor.

A Academia Mineira de Letras acolhe hoje uma intelectual e escritora admirável. Traz consigo uma obra que a faz respeitada e admirada nos meios acadêmicos e em todos os espaços que se abrem ao conhecimento e à cultura. Um nome de grandeza nacional e internacional, como se comprova por sua participação como jurada, uma, duas vezes, no mais importante prêmio mundial de literatura infanto-juvenil – sempre as crianças e os jovens no seu coração –, o Prêmio Hans Christian Andersen, vinculado a UNESCO.

Mas Antonieta tem uma dimensão muito especial, um registro muito próprio que a faz ser, além de mestra, em vários níveis escolares, da escritora e intelectual – leitora voraz e amorosa, uma pessoa humana que dignifica a nossa sofrida e peregrina condição. Os estudos, as leituras, o conhecimento da professora Antonieta não cabem dentro dela. Demandam saídas, sempre à procura das crianças, dos jovens, das professoras e professores que com eles interagem. É uma missionária da educação e da cultura.

Maria Antonieta vai contribuir muito para que a nossa Academia, sob a esplêndida liderança de Rogerio Faria Tavares, amplie ainda mais os seus espaços de interlocução com a sociedade e, sobretudo, com as crianças e a juventude. Vai contribuir muito para que a literatura, que mais prezamos, tenha bons encontros e diálogos com a música, o teatro, o cinema, a pintura, a história, a filosofia. Espaço do saber aberto, compartilhado, dialogante, abrindo novas perspectivas às possibilidades humanas. É isto que nos traz esta mestra de gerações.

Seja muito bem-vinda professora Maria Antonieta Antunes Cunha que, a partir de agora, dignifica e engrandece esta Casa! Seremos melhores com a sua presença!