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por Patrus Ananias

Recebemos a natureza de graça. Para quem tem fé, de Deus; para quem não tem fé, da vida, de uma origem misteriosa. Mas nós recebemos de graça. O ar que nós recebemos e respiramos é vital, cinco minutos sem ele, morremos. Recebemos de graça a terra pela qual nos alimentamos e edificamos nossa casa e cidades.

Vinculada à terra, está a água. Não satisfeitos, ao invés de aproveitarmos e usarmos bem, nós envenenamos o ar que respiramos, a terra e consequentemente a água. A questão do aquecimento global e da diminuição das águas são aspectos preocupantes. Como podemos mobilizar corações e mentes, como podemos sensibilizar as pessoas para causas relacionadas com a vida a partir desse tema vital que é a água e que se acumula naturalmente com o ar, com a natureza e com a terra?

Função social da terra e da água
A água tem uma função social; teoricamente a água é um bem público. A terra é a guardiã das águas, e vinculada à terra, estão os recursos que possibilitam e mantém as águas: a biodiversidade, os ecossistemas. A terra no Brasil é vista como um bem privado sem limites, aliás o direito de propriedade no Brasil é do século XIX. É o direito de ter, usar e abusar.

Para preservar as águas, esse bem sagrado, essencial a vida de cada família, de cada comunidade, de cada região, nós temos que preservar a terra. Por esta razão, o direito à propriedade não pode ser absoluto. O direito à propriedade tem que estar adequado às exigências do bem comum, do interesse coletivo e do projeto nacional. O direito à propriedade tem limites. Precisamos fazer o uso mais racional e amoroso da terra, da água, dos bens da natureza.

A superação do individualismo também é importante. Os meios de comunicação, centrados no indivíduo, estimulam o consumismo, ao cada um por si e o diabo contra todos. Pois bem sabemos que Deus só opera onde há solidariedade e trabalho coletivo. Uma coisa são os direitos e garantias individuais, o respeito ao mistério e a individualidade de cada ser humano, agora, outra coisa é o individualismo. Nenhum ser humano existe sozinho. Nós somos essencialmente seres comunitários, sociais. Por dependermos uns dos outros, temos que recuperar a dimensão comunitária, societária da vida e começar a discutir a questão vital da água, em relação a esse direito abusivo da propriedade.

A Casa Comum
Os direitos individuais têm que se adequar aos direitos sociais, aos direitos coletivos. O que é o bem comunitário? O Papa Francisco colocou isso muito bem na Encíclica Laudato Sien – Sobre o Cuidado com a Casa Comum. Seja aqui em Belisário, seja no município de Muriaé, seja na Zona da Mata, seja em Minas Gerais, seja no Brasil, seja na América Latina, seja no planeta, nós vivemos em comunidade, nós vivemos em uma casa comum, o ar que respiramos é o mesmo e as fontes da vida são as mesmas. E associada a essa dimensão comunitária da vida se encontra o nosso compromisso com as gerações presentes e com as gerações futuras.

Temos o legado secular da concentração da terra urbana e rural e a terra para fins especulativos. No século XXI com os desafios sociais ambientais que nós estamos vivendo, não se admite mais propriedade especulativa, uma propriedade que não cumpra uma função social, que não contribua para o bem comum.

Como enfrentar a poluição e a redução das águas? É uma coisa assustadora: qualquer rio que passe em qualquer cidade fica poluído. É o caminho natural dos esgotos. A minha região é seca e por isso sou apaixonado com chuva. Em Bocaiúva se chover 20 dias o povo diz: “Ô tempo bom! ”. O que assusta na minha região é a diminuição dos rios, os rios que eram perenes na minha infância não existem mais por vários fatores: poluição, desmatamento, fim das matas ciliares e a ação nefasta das mineradoras. A economia de Minas está muito ligada à mineração e o que aconteceu em Mariana, Brumadinho e pode acontecer em outras cidades, é inaceitável. As mineradoras cometem essas tragédias criminosas, comprometem bacias hidrográficas e ainda há setores da sociedade que avaliam que a Vale tem que voltar a funcionar, pois gera emprego.

Como enfrentar de forma eficaz a questão nefasta das mineradoras? Como enfrentar setores do agronegócio? Tudo isso é herança nefasta do latifúndio, do coronelismo, da exploração das terras e das mineradoras. É razoável você fazer irrigação de pastos, milhares e milhares de hectares, dia e noite por meio de poços artesianos? Assim como as nossas nascentes, os nossos poços têm limites. Os recursos hídricos subterrâneos também têm limites. O Brasil precisa produzir alimentos? Precisa. Mas alimentos saudáveis e, sobretudo, os que promovam a vida e não a morte.

Ainda temos o desafio do saneamento básico. Desde menino eu escuto que os governantes não gostam de fazer saneamento básico por que não aparece. Segundo dados da ONU, 35 milhões de brasileiros não têm acesso a água potável; 100 milhões, quase a metade da população do Brasil, não têm acesso ao saneamento básico, ou seja, nós praticamente não temos acesso ao tratamento de esgoto. Um país como o Brasil ainda não tem investimento consolidado no tratamento de esgoto.

Precisamos ter uma relação melhor com as águas da chuva. No governo Lula, tivemos algumas experiências interessantes e uma delas se consolidou: a experiência com as cisternas. Foram construídas um milhão e duzentas mil cisternas. Uma tecnologia simples, feita por um nordestino, se resume a um equipamento que se coloca nas casas para aproveitar a água das chuvas, muito útil principalmente nos períodos da seca. Eu visitei no sertão da Bahia, quando era ministro d Desenvolvimento Social e Combate à Fome, uma residência onde existia uma cisterna. Perguntei sobre os benefícios para a dona da casa e ela disse: “o benefício maior é ficar mais perto dos meus filhos”. Ela gastava três ou quatro horas, por dia, carregando água na cabeça.

Ocasionalmente a chuva provoca estragos. Mas de fato, tudo está interligado como se fôssemos um. Tudo está interligado numa casa comum. É uma questão urbana, do jeito que as nossas cidades estão, qualquer chuva é um problema. Com a especulação imobiliária, tudo é asfalto e cimento. As áreas verdes cada vez mais reduzidas, se não, inexistentes. Então vira tragédia. Por isso eu digo sempre, temos que pensar a questão rural e urbana de uma forma mais integrada. Na área rural, principalmente nas regiões mais áridas, precisamos estabelecer uma relação bem mais saudável, de aproveitamento. Que foi o que começamos a fazer e podemos continuar desenvolvendo.

Considero fundamental cada um fazer sua parte: reduzir o lixo, participar da coleta seletiva, dar um uso mais cuidadoso e carinhoso para a água, porém não podemos perder de vista que o drama maior está com o grande capital, com as mineradoras, com o agronegócio com as grandes indústrias e corporações que não têm limites.

Uma grande tarefa nossa, como cristãos, como pessoas de bem, comprometidas com a vida, que queremos uma sociedade mais anunciadora, mais acolhedora, é fortalecer a dimensão comunitária. Vamos estimular as pessoas a abrirem os olhos e o coração, a pensar mais no coletivo. A sociedade brasileira precisa consolidar um conceito ampliado de comunidade com as pessoas de boa vontade, com as pessoas que querem construir uma sociedade justa, fraterna, solidária, que preserve os recursos naturais, que preserve a água para gerações futuras.

*Palestra proferida no I Fórum das Águas de Belisário – Muriaé/MG – 23/03/2019