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Publicado originalmente na revista Encontro, edição de maio/2012

Patrus Ananias

Depois de longos anos reencontrei Odete Lara. Inicialmente levei um susto. Eu a conheci no cinema, esplêndida,como mulher e como atriz,nos anos 60 e 70 do século passado, em filmes como Bonitinha, mas ordinária, Boca de Ouro, Copacabana me engana, O Dragão da maldade contra o santo guerreiro. Foi uma das musas do chamado Cinema Novo. O cineasta Antônio Carlos da Fontoura, que a dirigiu em dois filmes, considera-a “uma das mais cinematográficas atrizes do cinema brasileiro, com completa noção do espaço cinematográfico, do posicionamento dos refletores e do enquadramento da câmera. Uma atriz nata, conscientemente linda, sempre no ângulo favorável para nós, enquanto admiradores, e para ela, enquanto admirada”.

Antes do cinema foi modelo, fez teatro e televisão, cantou com “engenho e arte” músicas de Vinícius de Moraes, Chico Buarque e outros mais. No teatro esteve em duas peças que marcaram época: Liberdade, liberdade e Se correr o bicho pega, se ficar o bicho come. Mas confessou que não se sentia bem no teatro: “Eu tinha pavor do palco. Sou muito retraída. Fico nervosa todas as noites”. Sua vocação era o cinema.

Pelo final dos anos 70, descobri que escrevia. Li com prazer Eu nua. Escreveu outros. Traduziu obras estrangeiras. Enfim, uma “mulher supimpa”, inteligente, atrevida. Quebrou padrões de comportamento, ajudou-nos a construir novos horizontes e possibilidades.

Guardei dela a imagem da grande artista na mulher bonita e sensual. Se não carecia de sua beleza para ser profissional notável, também não a dispensava. Dela tinha plena consciência e fazia bom uso.

Eis que, de repente, eu me deparo surpreso, em um programa de televisão, com uma envelhecida Odete Lara, além dos 80. Perdeu aquele esplendor corporal que tanto mexeu com o imaginário da minha geração. A primeira impressão foi orientada pelo impacto do envelhecimento: eu não conseguia unir as duas pontas separadas pelo rigor do tempo.

Odete Lara desmentiu-me a impressão inaugural. Ela foi crescendo na entrevista. Adquiriu novos contornos estéticos em profunda sintonia com a dimensão ética de uma bela vida. Fui, ao lado da minha companheira Vera, deixando-me seduzir pelos novos encantos da grande dama: inteligência, sensibilidade, humor. Sempre sedutora, Vera e eu concordamos. Surpreendeu-nos a extensão de seus conhecimentos, participante atenta e ativa da “grande prosa do mundo”. Tocou-nos a sua serena e amorosa percepção das pessoas. Nada perdera do brilho esperto dos olhos. Tornou-se budista num plano superior, longe dos dogmas e sectarismos. Na parede de sua casa, uma superposição de fotos na qual Gandhi é o destaque.  Distingui, entre muitos, Thomas Merton e Vinícius de Moraes. Se não vi, pressenti: Glauber Rocha, Oduvaldo Viana Filho, o imenso Vianinha, Baden Powell, Tom Jobim.

Odete fala da morte como fala da vida: com doçura. Nenhuma amargura ou saudosismo, mas o prazer de ter sido o que foi, de ser o que é. Seu desejo é reencontrar e cantar com Vinícius de Moraes e Baden Powell. Se viveu o Cinema Novo foi também forte presença na Bossa Nova. Nara Leão foi uma amiga inesquecível. Fala dela como se as duas estivessem conversando.

Fomos nos deixando levar por aquela conversa boa, generosa, iluminada. O encanto se apossou de nós e, com ele, a emoção. Quando terminou a entrevista-depoimento, enxugamos lágrimas emotivas e discretas. Odete havia nos dado uma boa aula: é possível envelhecer com dignidade, alegria e, sobretudo, amor. Amor às amigas e amigos, amor à vida e à humanidade sem arroubos, num tom de quem sabe das fraquezas humanas, superando-as na compaixão. Fala com carinho do Brasil e da nossa gente. Expande luz; alcançou a paz. Assim nos pareceu. Longa vida para os que envelhecem crescendo em sabedoria. Longa vida para Odete Lara!